Existem diferenças significativas entre mediunidade, animismo e paranormalidade. Por isso, há cerca de duas horas, quando terminei de ver o filme Atividade paranormal (Paranormal activity, 2009), um dos maiores sucessos cinematográficos do momento, a primeira coisa que me chamou a atenção foi o título. Afinal, trata-se de um projeto autoral, no qual Oren Peli roteiriza e dirige um total de apenas quatro atores, sendo que dois é que predominam durante a projeção. A referência à paranormalidade consta do título original, não sendo uma das habituais derrapadas das versões para o português. Mas se o filme trata, segundo todos dizem, da perseguição de uma entidade espiritual ou demoníaca a um casal, o que paranormalidade teria a ver com a coisa?
Numa definição brevíssima, paranormalidade constitui um fenômeno de origem humana, ou seja, provocado por uma pessoa, gente como eu ou você, caracterizado pela externalização de capacidades que não poderiam ser razoavelmente explicadas pelas ciências em geral, notadamente a Biologia, a Química ou a Física. São fenômenos que violam as leis que regem a natureza como a conhecemos. É objeto de estudo da Parapsicologia e contestada com veemência, por indivíduos convencidos de que todos os fenômenos tidos por extrassensoriais seriam nada mais do que fraudes e charlatanismo.
Voltando ao tema, estaria o título do filme sugerindo que não existe assombração alguma e que a causa do drama visto na tela seria humana? Talvez a protagonista, Katie, não fosse uma vítima e sim a fonte inconsciente de todo o aparente mal?
Esta é apenas uma especulação, que o filme não ajuda a resolver. Talvez o autor tenha apenas se equivocado na hora de batizar o projeto.
Vi o filme após uma ler uma crítica interessante, que todavia apontava, como defeitos na narrativa, o "isolamento autoimposto do casal", que não mostra as fitas com as experiências bizarras gravadas a amigos ou especialistas, nem se afasta da casa onde tudo está acontecendo. Afinal, mesmo acreditando que o perseguidor seguiria Katie onde ela fosse, seria natural que qualquer pessoa procurasse um refúgio, onde talvez encontrasse ao menos a sensação de segurança, até segunda ordem.
Só posso falar por mim: eu, com certeza, deixaria aquela casa e, por mais ingênuo que isso possa parecer, não dormiria de luzes apagadas nem com a porta do quarto aberta. Aliás, se me permitem a confidência, durmo na penumbra, mas com a porta fechada e nenhuma parte do meu corpo para fora da cama. Tenho lá as minhas razões, que remontam à infância e ao medo do que poderia haver sob o colchão.
Em que pese a plausibilidade da crítica, não podemos ignorar que os protagonistas conversam sobre o assunto com a única amiga que aparece na projeção. Ela, inclusive, oferece a sua própria casa. O casal também consulta um especialista e, na hora do aperto, chamam-no uma segunda vez, não tendo culpa se o sujeito entra e sai, sem lhes dar a oportunidade de explicar nada ou de exibir as fitas. Por outro lado, a pessoa que seria a grande autoridade no assunto só não foi contatada porque se encontrava fora do país.
Além disso, devemos lembrar que os estadunidenses têm uma inclinação ao isolamento que chega a ser incompreensível para nós, latinos, que vivemos enfiados nas casas dos parentes e celebramos tudo com amigos. Notamos, no filme, que apesar de serem muito jovens, Katie e Micah em momento algum aludem a qualquer familiar. Sabemos que estão juntos há três anos e que os fenômenos já vinham se manifestando na casa (é deles? é alugada?) há algum tempo, em nível brando. Talvez eles não tivessem mesmo a quem recorrer.
Atividade paranormal, talvez por apelo cinematográfico, parte de uma premissa equivocada: a de que existem fantasmas (espíritos de pessoas falecidas) e demônios (entidades não-humanas voltadas naturalmente ao mal). Dr. Friedrichs, o cientista que aparece no drama, define a si mesmo como especialista "em fantasmas", mas se considera inapto para lidar com demônios e, por isso, recomenda um colega que é demonologista. Sim, existem demonologistas na vida real, mas nem por isso deixa de ser algo engraçada essa enorme cientificidade em torno de algo implausível. Na medida em que acreditamos nessas duas distintas classes de entidades, as técnicas para lidar com uma não servem para lidar com a outra, dificultando seriamente o enfrentamento do problema. Prefiro crer na existência de um princípio inteligente, que surge da mesma forma para toda e qualquer criatura que possa ser considerada uma individualidade. Assim, não haveria diferenças ontológicas entre aquilo que se convencionou chamar de fantasmas, demônios e anjos. Todos seríamos Espíritos, em distintos estágios de evolução.
Como não poderia deixar de ser, há furos no roteiro. Refiro-me, sobretudo, à sequência da tábua Ouija, cuja agulha se movimenta em sentidos definidos e depois o tabuleiro se incendeia, para produzir uma mensagem. Como gerar um fenômeno desses sem um médium? Naquele momento, não havia ninguém em casa e se presume que Katie seja a médium, já que os fenômenos perseguiram a ela desde os seus oito anos de idade. Mas tudo bem, façamos concessões. Afinal, fenômenos de efeitos físicos são dificílimos de produzir e, como sempre acontece no cinema, os que vimos eram de enorme magnitude. Coisa de profissional, digamos assim.
Atividade paranormal é um ótimo filme. Seu maior mérito, contudo, tavez não seja o conteúdo em si ou a linguagem, que adota a técnica de câmera subjetiva, mas provar, novamente, o que é um verdadeiro filme de terror. Gritos, efeitos sonoros dramáticos, sangue esguichando na tela, gosmas, torturas e mutilações são recursos de quem quer chocar, mas não tem inteligência para fazê-lo com classe. E chocar como um fim em si mesmo, sem qualquer finalidade útil. Neste caso, a narrativa usa o terror psicológico, o medo por excelência, e nesse aspecto consegue ser altamente eficiente. Se você é suscetível, sim, vai sentir medo de verdade. Se isso é um problema, não vá ao cinema. Simples assim.
Aviso de spoiler:
se não viu o filme, não prossiga na leitura!
A crítica suprarreferida lamenta, também, a cena final, reputando-a "hollywoodiana", "convencional", "clichê". Tem razão. Nota-se, naqueles instantes finais, uma clara concessão ao desejo de provocar o susto máximo no espectador, mesmo que isso comprometa o próprio cerne da proposta. Nada que comprometa o filme, todavia. Ele continua sendo muito bom e, como em qualquer resenha cinematográfica, é possível que este senão se limite a uma simples questão de opinião, sem o mínimo valor de convencimento.
A narrativa segue num crescendo. As agressões se tornam cada vez piores e mais diretas, revelando que, se há uma entidade, esta nutre sentimentos de possessividade em relação a Katie e de ódio (ciúme?) em relação ao leviano e imaturo Micah. Por isso, a certa altura, pensei com meus botões que só estava faltando a coisa evoluir para um episódio de possessão. E não é que evolui, mesmo? Micah é violentamente assassinado por alguém usando o corpo da namorada. Alguém que, decidido a eliminá-lo naquela noite, o convence a permanecer na casa, mesmo depois de Katie (a verdadeira) ter implorado para ir embora e o rapaz ter decidido que não passariam mais nenhuma noite no local.
Eu teria mostrado Katie possuída voltando da cozinha e matando Micah a facadas. O roteirista-diretor preferiu retirá-la do quarto, recorrer ao expediente fácil da gritaria e, após nos botar num estado de tensão, olhando para um negrume à espera de que algo aconteça, exibir um fabuloso arremesso na parede e, depois, um rosto distorcido se aproximando da câmera. Todos com bastante medinho. Uma escapulida que se perdoará pelo conjunto da obra e porque, no final das contas, para uma produção de estreantes, o resultado foi bem além do esperado.
Por fim, parece-me interessante destacar que, se o segredo da história é mesmo paranormalidade e todos os fenômenos foram provocados pela mente perturbada de Katie, o homicídio do namorado caberia sem problemas no ato final do plano de uma paranoica total, que fora capaz de criar, ao longo do tempo, a ambientação sobrenatural necessária para o seu crime.
Bem a propósito, onde estará Katie agora? A Katie que não possui ninguém que possa confirmar as histórias de sua infância. À procura de uma nova vítima?
Bem a propósito, onde estará Katie agora? A Katie que não possui ninguém que possa confirmar as histórias de sua infância. À procura de uma nova vítima?
4 comentários:
Bom, no filme que eu vi a Katie termina olhando para a camera, e no final falou que ela desapareceu. Mas existe outra versão de que a policia havia chegado e que Katie pegou um tiro, afinal qual é a verdadeira historia? se é que é verdade, porque ficou um ponto de interrogação.
Das 12h39, desconheço essa versão alternativa. A que vi ontem foi igual a sua.
Eu, apesar de ateia, adooooooooooooro filmes assim, de terror, suspense.
Não acredito em nada do "outro mundo", simplesmente porque não acredito em "outro mundo", mas adoro sentir esses medinhos, esses sustinhos.
Vai entender...
No final das contas, quase todo mundo gosta desse medinho, Ana. É curioso, isso. Só a Psicologia para explicar.
Postar um comentário