sexta-feira, 12 de outubro de 2007

Amar sem ver

Ajoelhei-me no chão: estava louca para fazer uma coisa dessas, nunca tive que fazer isto nem quando era criança — meus pais nunca acreditaram em orações. Não fazia idéia do que dizer. Maurice estava morto. Extinto. Não havia uma coisa chamada alma. Mesmo a meia felicidade que eu dei a ele foi sugada como sangue. Eçe nunca mais teria a chance de ser feliz. Com ninguém, eu pensei: alguém poderia tê-lo amado e tê-lo feito mais feliz do que fui capaz, mas agora ele não teria esta chance. Ajoelhei-me, pus a cabeça na cama e desejei que pudesse ter fé. Querido Deus, eu disse — por que querido, por que querido? — faça-me ter fé. Não consigo acreditar. Faça-me acreditar. Sou uma cadela e uma impostora e me odeio. Não consigo dar um jeito em mim mesma. Faça-me acreditar. Fechei os olhos bem apertados, enfiei as unhas nas palmas das mãos até não sentir mais nada além da dor, e disse: vou ter fé. Faça com que ele esteja vivo e vou ter fé. Dê-lhe uma chance. Deixe-o ser feliz. Faça isso e eu acreditarei. Mas não foi o suficiente. Acreditar não dói. Então eu disse: eu o amo e farei qualquer coisa se Você fizer com que ele esteja vivo. Eu disse bem devagar: vou desistir dele para sempre, deixe apenas que esteja vivo e tenha uma chance, e apertei até sentir a pele rasgar e disse: as pessoas podem amar sem se ver, não é? Elas amam Você a vida inteira sem vê-Lo. E então ele apareceu na porta, e estava vivo, e eu pensei, agora começa a agonia de ficar sem ele, e desejei que estivesse morto outra vez sob a porta.

Graham Greene
 Um dos mais fortes trechos do romance Fim de caso, do inglês Graham Greene (no meu exemplar, 3ª edição da Record, 2000, pp. 117/118), publicado originamente em 1951. Fala sobre um homem, Maurice Bendrix, convidado a descobrir quem seria o amante da esposa (Sarah) de um amigo (Henry Miles). Aceita o encargo pois ele mesmo fora amante dela e, tendo sido súbita e inexplicavelmente abandonado, quer saber quem seria o homem que teria custado a sua felicidade. Mas suas investigações o levam a uma descoberta surpreendente, que revela um sacrifício por amor. E como ficar longe da mulher que se ama e que retribui o sentimento, especialmente após se saber o tamanho de sua devoção?
Greene se converteu ao catolicismo em 1926 e, desde então, passou a abordar em suas obras os dilemas morais e espirituais típicos de seu tempo. Fim de caso faz uma inegável apologia do catolicismo, apesar de o protagonista não ceder até o fim. Foi considerado o maior escritor católico da Grã-Bretanha (rivalizando, portanto, com C. S. Lewis), mas sempre rejeitou tal rótulo.
Em 1999, o cinesta Neil Jordan levou Fim de caso às telas, tendo Ralph Fiennes, Stephen Rea e a maravilhosa Julianne Moore nos papeis principais. Classificado como drama, eu o considero carinhosamente o meu filme de amor favorito — um raro exemplo de filme melhor do que o livro que o originou. Embora essa minha opinião seja altamente controversa.


Recomendo ler e ver.

4 comentários:

morenocris disse...

Artur da Távola diz: “...quando há afinidade, a aceitação existe ou acontece antes do entendimento”

Lembrei-me do filme Nunca te vi, sempre te amei.

Beijos.

Francisco Rocha Junior disse...

Yúdice,
Vi o filme e li o livro, nesta ordem. Contrariamente a ti, acho o primeiro melhor que o segundo.
Evidentemente, não sou crítico de cinema, muito menos literário. Mas vou me atrever a tecer alguns comentários sobre as obras.
No filme, Julianne Moore está mais que maravilhosa; arrebatadora e deslumbrante seriam adjetivos mais adequados, em minha visão. Aliás, em se tratando de Julianne Moore, isto é redundante - vide Magnólia, por exemplo.
Ralph Fiennes e Stephen Rea estão ótimos, ainda que Rea seja sempre generoso demais em seus papéis. É um bom ator, mas não arrebata, sempre abrindo muito espaço para o brilho dos que com ele contracenam, ao custo de seu próprio desempenho.
Minha preferência pelo livro, porém, provém do fato de que este tem algumas nuances que escapam à película.
Primeiro, porque destaca dois personagens que, na minha lembrança, são mal aproveitados no filme: Smythe, o homem da cicatriz no rosto, e o detetive Parkis. Eles são essenciais no enredo; não me recordo de sua participação ser tão decisiva assim no filme.
Não considero, também, que a obra faça apologia ao catolicismo, o que pode parecer muito mais forte na tela. O embate de Bendrix com Deus - que ele só percebe ocorrer quando lê o diário de Sarah - personifica a divindade. Esta circunstância me parece desqualificar a obra como um panfleto católico, apesar de algum misticismo. Como seria de se supor, ele sai perdedor da briga, e o final tem nuances muito sensuais para um escrito apologético.
Sarah entrega a Deus não só sua alma, mas também seu corpo, e o faz de modo arrebatado, fruto da inevitabilidade, como se Deus fosse o último homem de sua vida. Ela se entrega à divindade personificada, não à religião.
Bendrix só reconhece sua derrota no final do livro e, ainda assim, para refutar a lição do amor. Ele odeia Deus por tê-lo feito sofrer tanto após o fim de seu caso com Sarah, e parece ser este o sentimento que quer manter vivo.
O final tem algo de Alves & Cia., de Eça de Queirós, evidentemente sem o humor do escritor português: é que ambas as histórias moldam sua conclusão na acomodação dos personagens à menos pior das situações.
Abs e bom Círio.

Yúdice Andrade disse...

Vou precisar ver esse, Cris. Assisti apenas ao começo e me pareceu fascinante.

Francisco, não ser crítico é um virtude, em minha opinião. Como meros mortais que somos, temos o direito de formular impressões sobre obras artísticas e expressá-las. É isso que fazemos, sem compromissos, graças a Deus.
Tua visão sobre as duas versões de Fim de caso são muito lúcidas, o que não surpreende. Por isso mesmo venho me explicar.
ATENÇÃO, SPOILERS! QUEM NÃO QUISER SABER O FINAL DA HISTÓRIA, NÃO PROSSIGA A LEITURA!
Minha preferência pelo filme tem a ver com empatia, apenas, pois alguma coisa no estilo de Greene me pareceu um pouco cansativo. Mas assim que vi o filme, comentei que ele tem um desenvolvimento mais hollywoodiano e, portanto, comercial. Nele, Maurice e Sarah têm uma nova oportunidade de ficar de juntos, de usufruir do amor correspondido até que ela morre. Isso dá um alento às emoções do público. Saiba que detesto finais felizes. Nesse caso, porém, torci pelos amantes. Aprovei o final com morte, mas me senti bem por eles terem podido estar um pouco juntos. No livro, não há essa possibilidade.
Tens razão quando dizes que o livro explora melhor certas nuanças de personagens. Só um livro ruim não faria isso. Em todo caso, o tempo em que assisti/li já não me permite aprofundar o comentário.
Finalmente, reconheço que Greene não era um fanático religioso desses atuais. Acho que ele foi apologético por certas passagens do livro, que reli para selecionar o texto que transcreveria. Há uns diálogos até meio pastorais, sobre o papel de Deus na vida das pessoas. Mesmo assim, sem dúvida, o desfecho dado destoa do previsível, especialmente com Bendrix mandando Deus deixá-lo em paz.
Ele teve classe, mas acho que a apologia está lá, sim, o que entretanto não compromete em nada a qualidade da obra.
Assino embaixo quanto a Julianne Moore, que acabou de passar por São Paulo, durante as filmagens de Blindness.
Abraços.

Francisco Rocha Junior disse...

Yúdice, apenas para deixar claro o que saiu trocado no meu texto: preferi o livro ao filme.