Ontem à noite, eu relaxava assistindo a um episódio da quinta temporada do seriado ER, conhecido no Brasil como Plantão Médico. Nele, vimos a competente e dedicada Elizabeth Corday terminando um plantão de 24 horas e, em vez de descansar, emendando-o com mais um dia de trabalho. Ela quer dormir e tomar um banho, mas os pacientes vão aparecendo e ela não pode recusar-se a atendê-los. Nesse meio tempo, é convidada a participar de uma cirurgia pouco frequente e aceita. Cochila em pé durante o ato e o primeiro cirurgião pede que ela vá repousar. Isso não ocorre. Corday precisa atender um paciente tratado no dia anterior e que retornara com sintomas novos (dores nas pernas e uma crise de asma). A certa altura, decide aplicar magnésio no paciente, para relaxar os seus bronquíolos e permitir que ele respire melhor. Pega o frasco do produto e lê o rótulo. Trata-se de magnésio a 50%, mas ela, devido ao cansaço, entende 5% e aplica. O paciente entra em crise imediatamente: a dose é letal.
A equipe consegue salvar a vida do paciente. Após algumas horas, ele parece bem e sem sequelas, especialmente cerebrais. Ou seja, acredita-se que tudo deu certo. Ainda assim, um erro médico de notáveis proporções quase vira um homicídio. Para piorar, o residente supervisor de Corday saíra do hospital, para resolver um problema pessoal. Ao final, ela e o supervisor conversam com o diretor do hospital. Ela admite o erro e reconhece que não há perdão. O diretor avisa que vai conversar com a Gerência de Riscos e com os advogados do hospital, para decidir o que dizer à família do paciente.
Aplicando-se a lei brasileira ao caso em questão, após refletir um tempo, chego à conclusão de que Corday deveria ser acusada do crime de lesão corporal culposa. Parto da premissa de que, juridicamente, lesão corporal constitui qualquer alteração orgânica provocada em terceiros, seja ela anatômica ou funcional, excluídas naturalmente as hipóteses de tratamento médico realizado em estrita observância à lex artis, e as de práticas socialmente assimiladas (como fazer tatuagens, colocar piercings, etc.).
Algumas outras hipóteses me ocorreram, mas acabaram excluídas porque constituem crimes dolosos (tentativa de homicídio ou qualquer figura prevista no capítulo dos delitos de periclitação da vida e da saúde, tais como maus tratos). Dentre as hipóteses razoáveis, as únicas que admitem a forma culposa são o homicídio — imediatamente descartado, já que o paciente sobreviveu) — e a lesão corporal. Então ficamos neste, porque sem dúvida se aplica. Vejamos:
Ao injetar dose letal de magnésio no paciente, Corday alterou súbita e drasticamente suas funções vitais, o que cabe na definição de lesão corporal. Não teve dolo, sequer eventual, pois estava imbuída do melhor propósito de fazer o doente se sentir melhor, livrando-o da agonia de não conseguir respirar. Além disso, definiu uma terapêutica adequada, errando apenas quanto à dosagem do medicamento, o que me parece excluir a imprudência. Também não houve negligência, pois teve o cuidado de examinar o rótulo antes de utilizar o produto. Foi imperita, porque a despeito de, supostamente, ter tomado os cuidados que o caso exigia, agiu mal, de modo imperfeito e danoso.
O médico que assim procedesse, no Brasil, estaria sujeito a uma pena de 2 meses e 20 dias a 1 ano e 4 meses de detenção (art. 129, §§ 6º e 7º, do Código Penal). A meu ver, não há motivos que autorizem a absolvição, mas o profissional poderia ter sua pena aplicada em níveis mais baixos, considerando que o fator determinante do delito foi a exaustão física e mental do agente, que chegou a essa situação mais por necessidade do que por opção pessoal ou excesso de confiança.
E aqui chegamos a um ponto social importantíssimo: os médicos brasileiros, submetidos a jornadas de trabalho desumanas, estão lesionando ou matando pacientes por isso — culposamente, bem entendido? Em caso positivo, quanto de culpa lhes pode ser atribuída?
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