Meu irmão costuma dizer que depois que inventaram a desculpa, o mundo virou um lugar perfeito. Ele tem razão. É por trás das desculpas que escondemos nossa vergonha (os que têm vergonha na cara) pelo mal que fazemos, ou por aquilo que não fizemos, embora devêssemos tê-lo feito. No mundo do crime e dos abusos em geral, a criatividade é infinita. É como sempre digo: para o mal, nunca falta o talento.
Se o cara é preso por roubo, foi necessidade. Se é preso por estupro, pensou que a mulher queria. Se abusa sexualmente de uma criança de 5 anos, foi ela que deu em cima dele. Se dá um golpe na empresa, foi para se ressarcir de prejuízos sofridos na relação trabalhista. Se embolacha a esposa, foi ela que provocou. Se trai, foi culpa da carne, que é fraca. Se a justiça é lenta, é culpa da quantidade de processos. Se a polícia é truculenta, é culpa dos salários baixos. Se o médico atende mal, é culpa da tabela desatualizada dos honorários e do excesso de trabalho. Se a imprensa é irresponsável, a culpa é da liberdade de expressão. E por aí vai.
Mas já diziam os sábios: pepermintus in alterum anus refrigerium est (este latinório é em homenagem ao Val-André Mutran). Todo mundo, inclusive eu, repudiou a alegação daqueles jovens cretinos de Brasília, que queimaram o índio pataxó alegando que pensaram tratar-se de um mendigo. Mas e o que dizer, agora, da polícia de Abaetetuba, que se sente tão aliviada porque a garota metida por 30 dias numa cela com 20 homens teria, supostamente, 20 anos e não 15?
5 anos podem fazer alguma diferença, mas irrisória. Abuso é abuso. Eles não sabiam a idade dela, mas sabiam tratar-se de uma mulher, presumo. Ou os policiais de Abaeté não sabem reconhecer uma mulher quando veem uma? Pega até mal. Olha aí o caso do "Fenômeno".
Portanto, meus caros, economizem minha paciência com suas desculpas. Isso pode até ser comum, mas não é normal, nem digno, nem admissível. E merece severíssima punição. Quando as autoridades se escondem atrás de desculpas, toda a sociedade submerge em grande perigo.
Por fim, vale lembrar que a moça em questão estava presa sob a acusação de furto. As penas para esse delito são de 1 a 4 anos de reclusão e multa. A lei não mencionou estupros sucessivos. Nem poderia, claro. A polícia precisa lembrar que não basta não fazer: é imperioso impedir que outros façam.
Espero que essa história renda. Com os culpados sendo punidos.
9 comentários:
Bom dia, Yúdice.
Esse foi o melhor que li sobre a questão. Parabéns!
Abçs.
Yúdice, desconsiderando as ilegalidades que foram cometidas neste episódio, bem como, evitando comentários sobre a autoridade policial que cometeu tal atrocidade, e falta de estrutura da cadeia pública de abaetetuba, fico me perguntando o que pode ter surgido no íntimo dessa moça que teve vilipendiado seus mais comesinhos direitos como liberdade, legalidade e outros...
Obrigado, anônimo. Gentil comentário o seu.
Caro Sérgio, não temos condições de nos pormos no lugar dessa moça. Nem eu gostaria. Para mim, é muito difícil conviver com a irracionalidade que, nesse caso, chega a merecer o adjetivo de kafkiana.
Yúdice, cá estou de novo. Quero dizer que tenho acompanhado suas postagens todos os dias, mesmo naqueles em que não fiz comentários, por não perceber nada de válido que tivesse para dizer a respeito. Dessa vez estou aqui, comentando postagem do dia anterior, porque ontem li essa postagem e ela desde então não saiu da minha cabeça. Também, certamente, pela notícia chocante do que nossos policiais fizeram àquela moça, uma demonstração evidente de indiferença pelo ser humano e de crueldade com aqueles que se encontram, ainda que momentaneamente, em nosso poder. Confesso que, ao contrário de você, assíduo leitor e comentador das notícias de jornal, não tenho esse hábito saudável de manter-me atualizado das últimas notícias - coisa de que certamente não me orgulho, se quer saber, mas que ainda não tive iniciativa de modificar. A condição de filósofo, amante das coisas abstratas e universais, não me desculpa, porque o verdadeiro filósofo enxerga os grandes temas nas menores coisas e todos os eventos que os informes diários relatam, além de dar conta do estado de coisas em que nos encontramos, são motes de reflexão sobre diversas questões filosóficas que ali estão frequentemente suscitadas. Por causa dessa minha condição desinformada, acabei sabendo daquela notícia através do seu blog. Não foi a primeira vez que seu blog desempenhou esse papel informador para mim, mas foi certamente uma das vezes em que a notícia veiculada mais me chocou.
Contudo, não foi apenas pelo caráter perturbador da notícia que sua postagem pôs em movimento minha engrenagem de reflexão, mas também pela idéia mesma, ali exposta, de que todos os criminosos, mesmo os que cometeram os atos mais cruéis e terríveis, têm suas desculpas, suas versões excusantes da ciência, da previsão, da intenção ou da maldade que os tornariam culpados aos olhos do público. Evidente que o estilo com que você descreveu a coisa - que dá continuidade a uma respeitosa tradição da crônica com ar de comentário pessoal, do humor embebido de sarcasmo inteligente, de que a literatura e o jornalismo brasileiro já tiveram tantos belos representantes - me arrancou aquele riso, mais gostoso exatamente porque impossível, em que se ri do trágico que se abate sobre nós, em que se ri de perplexidade diante das coisas que nossa cota normal de assimilação não pode comportar. Mas ao riso se seguiu a reflexão, que queria ir além da constatação da óbvia cara-de-pau dos que se desculpam dos atos mais indesculpáveis. Parecia-me que havia algo mais que podia ser capturado naquelas desculpas esfarrapadas dos criminosos.
Foi aí que me recordei de uma passagem, que li certa vez na "Sociologia do Direito", de Niklas Luhmann, a propósito do surgimento, na história das sociedades, do procedimento judicial como estrutura de estabilização de expectativas comportamentais, e sobretudo de um comentário de Luhmann - não muito desenvolvido, na verdade, e talvez até por isso mais sugestivo para o leitor que pode associá-lo a outras intuições e experiências sobre o humano - que dizia o seguinte: "Princípios em comum são generalizáveis porque agora não se trata de continuidade da vida em uma pequena comunidade com suas poucas alternativas e suas condições concretas de vida, que são conhecidas e sobre as quais não se tem que refletir; trata-se sim de apresentar-se como uma pessoa razoável, aceitável do ponto de vista de uma moral generalizante, ou seja: trata-se da sobrevivência enquanto ser social. Na imagem do 'homem razoável' estão também as possibilidades de dar-se cobertura moral ao comportamento divergente. Os próprios delinqüentes utilizam essa imagem, argumentam 'normalmente' através de valores e arrazoamentos da ordem aceita, procurando apenas neutralizar simbolicamente o conteúdo especificamente ilegal do seu próprio comportamento. (...) Essa estratégia utiliza o grau mais elevado de abstração dos valores, ou seja, a circunstância de que é possível apelar-se para valores socialmente reconhecidos mesmo para os comportamentos que divergem das normas" (p. 209-210).
(continuação)
Relacionando a sua postagem com aquele excerto, ocorreu-me que a intenção do criminoso que se desculpa apoiando-se nas circunstâncias, no comportamento da vítima, na fraqueza dos homens etc. pode não estar exatamente querendo tornar o seu ato um ato excusável de condenação ou mesmo de pena, mas sim torná-lo um ato humano, um ato que não veio de um monstro, e sim de um homem - fraco, volúvel e mau, como todos os homens podem ser.
Afinal, o julgamento de um homem é mais razoável que o julgamento de um monstro. Por mais esfarrapada que seja uma desculpa, ela recoloca o criminoso nas veredas comuns da fraqueza e da maldade humanas de todos os dias, ela o faz parecer novamente um de nós - um exemplar trágico, lamentável, culpável, punível de um de nós, mas um de nós mesmo assim. O estuprador ou abusador que apela para o comportamento provocador ou sedutor da vítima, na hora mesma em que faz esse apelo, desperta no seu ouvinte uma reação ("É, ser provocado, ser seduzido, acabar fazendo o que não se queria, o que não se devia fazer - eu sei como é isso"), que não garante a empatia suficiente para torná-lo desculpável (salvo para pessoas com um julgamento muito distorcido sobre moralidade sexual), mas garante sim uma empatia suficiente para admitir: "É, você é como eu, só que mais fraco, mais volúvel, mais cruel que eu". Acho que a desculpa, nesse sentido, não funciona como álibi ou defesa, mas como apelo ao senso de humanidade dos que o julgam, como pedido desesperado do direito de ser julgado como homem, como "um de nós", e não como fera, como besta, como "o outro".
Quero dizer que nada disso torna aquelas desculpas mais aceitáveis aos meus olhos, que não estou aqui defendendo nenhum desses atos cruéis nem seus respectivos autores, apenas refletindo, filosoficamente, sobre as razões dessas desculpas inconvicentes, mas recorrentes, que acompanham as mais atrozes demonstrações da maldade humana cotidana.
Caro André, eu até estudei alemão, mas não falo o idioma, então não consigo filosofar. Tenho mais facilidade para encarar esses fenômenos sob uma perspectiva psicológica. Quando leio teus comentários, identifico aqui e li algumas relações, como ocorreu nesta postagem.
Tua abordagem foi excelente, no que tange a uma possível compulsão dos transgressores em buscar o perdão, sob o fundamento da própria humanidade. Com efeito, colocarmo-nos no lugar do outro é uma das tarefas mais difíceis de realizar, porém permite conseqüências valiosas. Como seria o comportamento das pessoas em geral, diante dos crimes, sobretudo, se fôssemos mais aptos a nos colocar no lugar do outro?
Caro Yúdice, meu alemão também não é grande coisa. Por isso, se for verdadeira aquela sentença de Heidegger que Caetano tornou famosa, estamos os dois condenados à inanição filosófica.
A percepção que você chamou de "psicológica", e que eu chamaria de "fenomenológica", é a mais apropriada para essa situação. Colocar-se no lugar do outro é mesmo um desafio e tanto. Na verdade é o grande desafio da intersubjetividade. Piaget dizia, e Kohlberg comprovou em suas pesquisas que ele estava certo, que "descentrar-se" do próprio eu e adquirir por um instante a perspectiva de um outro era uma capacidade que o ser humano só desenvolvia depois dos 8, 9, 10 anos. Até lá a criança entendia as regras morais em termos de obrigações e proibições, prêmios e castigos, agradar ou desagradar os outros. Mas quando ela conseguia enfim situar-se no outro, ela entendia a noção de reciprocidade e de respeito, e só aí verdadeiramente nascia o senso moral.
Hegel falava da mesma coisa quando definia o amor como ser-si-mesmo-no-outro, trancendência da própria subjetividade mediante o mergulho numa intersubjetividade compartilhada. Dificilmente alguém pode dar uma definição melhor que esta.
Queria discutir contigo algumas questões de direito penal - na verdade, de filosofia política criminal - a partir do mote do filme "Tropa de Elite". Você toparia usar um de nossos espaços virtuais para essa conversa?
Amigo André, acho que o primeiro passo é batermos um bate papo para compartilhar uma Coca Cola, uns petiscos e algumas idéias. Li teus comentários para minha esposa, que também ficou interessada. Depois, levamos isso para um plano mais institucional, como o debate havido um dia desses, onde houve a palestra do Sandro, que comentaste. Achei fantástico. Infelizmente, não pude ir. Mas acho que devemos costurar algo para 2008. Os petiscos podem ser antes, claro.
Querio Yúdice. Não recusaria teu convite para um bom bate-papo nem para petiscos regados a coca-cola nem que fossem convites separados... associados, então...
Considere combinado.
O que sua esposa disse?
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