segunda-feira, 19 de novembro de 2007

Criminalização da homofobia

A Constituição de 1988 dispõe que "a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei" (art. 5º, XLII). A lei em questão é a de n. 7.716, de 5.1.1989, que "define os crimes resultantes de preconceitos de raça ou de cor". Posteriormente, a Lei n. 9.459, de 1997, inseriu a punição, também, da discriminação decorrente de "etnia, religião ou procedência nacional".
Até onde me consta, não houve dificuldade para aprovação dessas matérias pelo Congresso Nacional. Todavia, no ano passado foi proposto o Projeto de Lei da Câmara dos Deputados n. 122, que pretende ampliar mais uma vez os termos dessa lei, criminalizando agora as condutas que importem em discriminação por motivo de "gênero, sexo, orientação sexual e identidade de gênero". E adivinhem o que aconteceu? Em vez de mobilização em torno da aprovação de um diploma que pode favorecer a cidadania, tratando a todos como iguais, e apesar de o PL ter sido aprovado na Câmara ainda em 2006, no Senado a mobilização é da bancada evangélica, que deseja ver punido apenas o preconceito quanto ao sexo, mas não orientação sexual.
Em suma, os evangélicos não veem mal nenhum nos atos cotidianos de menosprezo aos homossexuais. E, de quebra, querem impor ao país a sua forma de ver o mundo, condicionada por sua miopia religiosa. Pelo que vi, navegando em algumas páginas da Internet, a preocupação da turma é não poder emitir opinião nenhuma contrária ao homossexualismo, coisa que poderia atrapalhar as suas pregações. Ah, o maldito Estado laico!
Enquanto alguns parlamentares despreparados agem como se o Brasil fosse uma teocracia fundamentalista, o Deputado Federal Iran Barbosa (PT/SE), relator do projeto, que fora da política é professor de educação básica (tendo formação em História e Direito), emitiu um parecer favorável que é um libelo pela justiça e pelo amor. Na íntegra, com meus agradecimentos a Aline Beckman, que me enviou o texto:

Todas as cores do amor
"Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, e näo tivesse amor, (...) eu nada seria".
I Coríntios 13: 1-2.

A principal mensagem do evangelho de Jesus Cristo é o amor. Isso está evidente na máxima segundo a qual devemos "amar o próximo como a nós mesmos". O amor também é o fundamento da maioria das religiões, cristãs e não-cristãs.
Infelizmente, o amor cedeu espaço à intolerância na análise do PL 122/2006, em trâmite no Senado Federal, que torna crime a prática da homofobia.
A polêmica é falsa. Primeiro, porque o pleno exercício da sexualidade, livre de preconceito, discriminação e violência é um direito de todas as pessoas em um Estado Democrático de Direito, onde religião e políticas públicas não se confundem.
Segundo, porque a lei não instituirá comportamentos. Eles já existem. O PL 122/2006 apenas assegurará que as individualidades das pessoas homossexuais não sejam violadas pelos que não aceitam a livre orientação sexual e a identidade de gênero.
O Brasil é campeão de homofobia. Mais de uma centena de seres humanos são barbaramente assassinados anualmente apenas por serem homossexuais. Milhares de outros sofrem agressões físicas e psicológicas, diariamente, somente porque amam seus iguais.
Homossexualidade não é doença! Os gays são mais de 18 milhões de cidadãos e cidadãs tratados como seres de segunda categoria, pois têm os mesmos deveres mas não podem usufruir dos direitos garantidos aos heterossexuais.
O que o PL 122/2007 faz é eleger a integridade física e psicológica das pessoas gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais (GLBT) à dignidade de bem jurídico tutelado pelo direito penal. Ou seja, ele criminaliza a homofobia, submetendo essa prática às mesmas penas previstas para o racismo. Seu grande mérito é desestimular comportamentos homofóbicos, em especial os crimes que hoje em dia são praticados com requintes de crueldade.
Interpretações baseadas em leituras fundamentalistas da Bíblia não podem inviabilizar a criminalização da homofobia. Os argumentos de que o PL atinge os princípios da liberdade de expressão e da liberdade religiosa também não se sustentam, já que o projeto apenas pune condutas e discursos discriminatórios. Se o racismo, a discriminação de gênero e a xenofobia já são crimes, por que não a homofobia?
O projeto não interfere na liberdade de culto ou de pregação religiosa. Essa liberdade é uma grande conquista da civilização contemporânea. Seu fundamento essencial é a separação entre Igreja e Estado, ou seja, o Estado laico. "A Deus o que é de Deus, a César o que é de César". Assuntos religiosos têm que ser tratados pelas religiões. Políticas públicas são questões de Estado.
O mesmo Estado laico que assegura a liberdade religiosa, impede que as crenças interfiram nas políticas públicas. Por esse motivo, as religiões podem manifestar livremente juízos de valor teológico sobre a homossexualidade, mas não podem impedir que o Estado brasileiro comece a pagar a dívida inaceitável que tem com a comunidade homossexual. Também não podem praticar condutas discriminatórias e incitação à violência.
A homossexualidade, para alguns, é pecado. Para outros, sem-vergonhice. Pensamos que não é nem uma coisa nem outra. É apenas uma das muitas faces da complexidade humana. À sociedade e ao Estado cabe respeitar a liberdade dos que possuem uma orientação sexual diferente. Diversas religiões entenderam isso, tanto que a Igreja Cristã Metropolitana e a Igreja Anglicana aceitam a homossexualidade, ordenando, inclusive, religiosos homossexuais para postos de destaque em suas fileiras.
As relações homoafetivas são um fato. Elas geram direitos e deveres. Em um Estado laico e democrático, podem e devem ser reconhecidas, como já aconteceu em diversos países social e juridicamente mais avançados.
O PL 122/2006 causa polêmica porque nossa sociedade ainda é marcada por traços machistas, sexistas e homofóbicos. Alguns setores ainda não aprenderam a conviver com o diferente, o que causa estranhamento em um país com tanta diversidade cultural, social e religiosa como o Brasil.
A "paz de cemitério" que reinava, até a década de 90, entre homofóbicos e as pessoas GLBT beneficiava apenas aos primeiros, em detrimento da dignidade e dos direitos humanos dos segundos. A invisibilidade dos homossexuais diminuiu sensivelmente com as paradas e as políticas públicas que, finalmente, começam a ser implementadas no Brasil. A maior parada gay do mundo reuniu mais de 3,5 milhões de pessoas em São Paulo, este ano, e mais de 30 mil aqui em Aracaju.
A visibilidade dos homossexuais trouxe consigo os conflitos. Mas o regime democrático não pode resolver esses conflitos oprimindo os homossexuais ou mantendo-os no anonimato. Ao contrário, deve fazê-lo alargando a cidadania, de sorte a incorporar os GLBTs.
Nesse contexto, o PL 122/2006 ajuda o Brasil a enfrentar a guerra desumana contra o preconceito e a discriminação. Representa um passo importante na caminhada em defesa da dignidade humana das pessoas GLBT. É, enfim, um projeto que homenageia o amor, em todas as suas cores.

3 comentários:

morenocris disse...

Que palavras, Yúdice. Quanta discriminação. Estava lendo agora o post.

"A polêmica é falsa. Primeiro, porque o pleno exercício da sexualidade, livre de preconceito, discriminação e violência é um direito de todas as pessoas em um Estado Democrático de Direito, onde religião e políticas públicas não se confundem.
Segundo, porque a lei não instituirá comportamentos. Eles já existem. O PL 122/2006 apenas assegurará que as individualidades das pessoas homossexuais não sejam violadas pelos que não aceitam a livre orientação sexual e a identidade de gênero".

Como podemos discutir e apresentar projetos para assegurar que você tenha direitos de fazer sexo com quem quiser? Excelente o texto.

Este post encaixa no outro, se você fosse obrigado a amar alguém. A interferência sobre a liberdade de você ter sentimentos ou não.

O amor já é tão complicado entre duas pessoas, por si só, imagina com a interferência de preconceitos e obrigações. O mundo fica cada vez pior. É o paradoxo.

A que ponto chegamos.

Um amigo me contou uma vez que a mãe dele falava que o dia que a água fosse comercialidade, seria o fim do mundo. A água é comercialidade e não é o fim do mundo.

E o amor? Também não será o fim do mundo!

E assim, vamos apertando o gatilho, enquanto podemos... amando e odiando ao mesmo tempo! odiando e lamentando...

É isso, só nos resta lamentar!

Beijos.
Boa noite.

Anônimo disse...

Olá Primo!!!

Deves estar percebendo que estou tentando deixar zerado a leitura de seu blog nos dias q estive ausente hehe

Quanto a questão da referida lei, confesso não ter uma posição concreta acerca do assunto. Entretanto a priori não vejo com bons olhos a aprovação de tal lei.
Esse expansinismo legal, coloca pra alguns como Legislarréia, é uma tendência que cada vez mais se confirma no Brasil. Se algo está errado, aedita-se uma lei que tudo ficará às mil maravilhas...

O que critico na lei em si é trata aversão aos homossexuais como homofobia. Radical demais, eu não gostar de uma pessoa pelo seu jeito (homossexual ou não) não significa que tenho repugnância a tal ponto de cometer abusos que viesse a ferir sua integridade tanto física quanto moral. E o meu medo é que tal lei se torne uma espécie de "proteção exacerbada" a tal ponto de que chamar alguém de "viado ou bicha" enseje multa, senão pena mais agravada. Não vejo a lei como formadora de cultura, nesse sentido.

Será que o nosso Judiciário está preparado pra tal lei? Depois do que presenciamos no 'caso Richarlysson' podemos imaginar o que poderá sair...

Como eu disse, ainda não é uma opinião concreta, é incipiente, passível de convencimento do contrário hehe

Grande Abraço!!!

Yúdice Andrade disse...

Cris, isso não é um comentário, e sim um poema. Maravilhoso.

Já que a opinião é incipiente, primo, penso que poderias meditar sobre o exagero dos críticos da proposta. Eles agem como se o uso da palavra "viado", doravante, fosse virar crime. Não é assim. Se eu disser em público que algo "é coisa de preto", posso descontentar a muitos, mas nem por isso cometo injúria preconceituosa, até porque não haveria sujeito passivo individualizado nessa hipótese.
Há que se ter bom senso. Não devo fazer apologias nem agredir a individualidade de ninguém. Mas a liberdade de expressão não foi nem será banida, assim como as regras sobre ausência de dolo. Portanto, uma coisa é eu dizer a um colega de classe "levanta, seu viadinho!". Outra, bem diferente, é menosprezar de verdade um homossexual, por essa sua condição.
O bom senso resolve muita coisa no Direito.