Mesmo estando muito cansado, pode-se dizer há semanas, amanhã, sábado, levantarei cedo da minha cama e irei ministrar uma aula extra para duas turmas, às 8h30. Tenho um bom motivo para isso. O tema da aula será dosimetria, nome que se dá ao procedimento que o juiz criminal faz para impor ao réu uma pena, quando decide condená-lo.
Embora a dosimetria seja obviamente obrigatória em todos os casos em que haja condenação, daí não resulta, na prática, a conclusão a que logicamente se poderia chegar: a de que os juízes sabem calcular a pena. Muito pelo contrário. As sentenças que vejo são tecnicamente incorretas, lacônicas (vício de fundamentação), repletas de especulações e valorações moralistas do magistrado (o Direito não existe para impor moral a ninguém), frequentemente omissas sobre fatos averiguados nos autos e, em geral, mal redigidas — sim, inclusive quanto ao vernáculo.
Para ser bem honesto, em dez anos como profissional do Direito, oito como professor de Direito Penal e quatro trabalhando no Tribunal de Justiça, raríssimas vezes vi sentenças decentes (note o adjetivo escolhido). Com tristeza, devo admitir que algumas das melhores que li foram produzidas em outros Estados do país, que costumam ser apontados nos meios jurídicos como mais avançados em questões jurídicas. Da produção paroara, lembro-me de uma única vez ter dito que a sentença estava muito bem elaborada. Algumas, que eram sentenças razoáveis (decentes). No geral, são ruins, quando não péssimas. Muitas, medíocres.
Para esclarecer minhas críticas, além do que mencionei acima, cito alguns erros técnicos gravíssimos e muito frequentes nas sentenças:
1. Na análise da circunstância judicial culpabilidade, falar em "intensidade do dolo" ou em "grau da culpa", posto que dolo e culpa pertencem ao âmbito do fato típico e não da culpabilidade — pelo menos desde a reforma penal de 1984. Não saber isso mostra que o juiz está desatualizado ou, pior, que ignora conceitos essenciais, trazidos pela teoria finalista da ação, que sucedeu a teoria causalista, já abandonada.
2. Aceitar como antecedentes criminais registros policiais pendentes, inquéritos ou ações penais em andamento, dentre outros, quando somente as condenações penais definitivas (fora dos casos de reincidência) podem gerar antecedentes.
3. Confundir antecedentes com reincidência.
4. Fazer especulações cretinas sobre a personalidade e a conduta social, tais como "a personalidade do réu é antissocial" (sem esclarecimentos) ou "o réu é voltado à criminalidade" (porque cometeu um delito, justamente o objeto da condenação).
5. Desvalorar duas vezes, ou nos momentos incorretos, circunstâncias executivas do crime ou a sua motivação.
6. Aumentar a pena com base em consequências óbvias, tais como aumentá-la, no homicídio, porque a vítima morreu! Ou no roubo, porque a vítima sofreu prejuízo econômico. É uma das coisas mais imbecis que se poderia fazer mas, acredite, acontece com frequência.
Se eu for desfiar o rosário, corro o risco de ficar horas escrevendo, então paro aqui.
Peço que compreendam que, ao dizer isso, não quero ser arrogante nem ofender ninguém. É a aflição de um estudioso do Direito Penal que move meus dedos sobre o teclado, neste instante. E é por isso que faço questão absoluta de ministrar essa aula específica sobre dosimetria, em pleno sábado. Se, dessas dezenas de alunos, uns dez conseguirem assimilar a questão e tomá-la como algo a ser cultivado, terá valido a pena. Para que o futuro da rotina forense-criminal seja um pouco melhor do que é agora.
É preciso que os profissionais da área aprendam e esse é o meu papel. Aquilo que consegui aprender amanhã será compartilhado. Espero que renda frutos.
Acréscimo em 10.11.2007, às 22h42:
PS — E a aula foi bem legal.
5 comentários:
Caro Yúdice, essa postagem é uma verdadeira aula.Gostei muito e até mandei para o meu e-mail.Me formei em 2004, e a dois anos estou no TJE,se eu te contar as perólas que já vi... Um forte abraço, professor.
Yúdice, postagem excelente, parabéns, por ela, por não ter perdido a capacidade de indignar-se diante da mediocridade e pela militância docente na aula de amanhã.
Apenas, como filósofo do direito, não poderia deixar passar sem nota a afirmação "o Direito não existe para impor moral a ninguém". Permita-me fazer aqui um comentário.
A Filosofia Moral distingue entre ética e moral. Ética tem a ver com o "bom": é o conjunto de valores que apontam qual é a vida boa na concepção de um indivíduo ou de uma comunidade. Moral tem a ver com o "justo": é o conjunto de regras que fixam condições eqüitativas de convivência com respeito e liberdade. Éticas cada qual tem e vive de acordo com a sua; moral é o que torna possível que as diversas éticas convivam entre si sem se violarem ou se sobreporem umas às outras. Por isso mesmo, a moral prevalece sobre a ética.
No terreno da ética estão as noções de felicidade, de caráter e de virtudes. As decisões de qual propósito dá sentido à minha vida, que tipo de pessoa eu sou e quero vir a ser e qual a melhor maneira de confrontar situações de medo, de excassez, de solidão, de arrependimento etc. são todas decisões éticas.
No terreno da moral estão as noções de justiça, ação, intenção, responsabilidade, respeito, limites, dever e punição. A moral tem tudo a ver com a questão do exercício do direito de um até os limites que não violem os direitos do outro.
As duas coisas, claro, são indispensáveis. Sem moral, a convivência é impossível. Sem ética, é infeliz e lamentável. Diz-se que quem age moralmente (por exemplo, não mentindo, não roubando, não matando etc.) faz o mínimo e não tem mérito, mas quem não age moralmente deixa de fazer o mínimo e tem culpa (por isso pode ser punido). Por outro lado, quem age eticamente (sendo generoso, corajoso, perseverante etc.) faz o máximo e tem mérito, mas quem não age eticamente apenas faz menos que o máximo e deixa de ter mérito, mas sem ter culpa (por isso não pode ser punido, mas, no máximo, lamentado).
Certamente, quando disseste "o Direito não existe para impor moral a ninguém", não tinhas essa distinção em mente. Quiseste dizer que não deveriam interferir na dosagem da pena julgamentos (negativos) sobre o fato de a pessoa consumir bebida alcóolica, ser promíscua, não ter emprego fixo, não se dar bem com os parentes ou com os vizinhos, escutar música em alto volume, vestir-se mal ou de modo lascivo etc. Mas todos esses são julgamentos de caráter (negativos porque avaliam que tais características estariam escluídas de um ideal de pessoa) e, nessa medida, éticos. Por isso mesmo é que não podem ser fundamentos de punição, nem de seleção do regime de intensidade, gravidade e duração da punição.
Mas com a moral o Direito, especialmente o Direito Penal, tem tudo a ver. Sem considerações de natureza moral, nenhum dos principais conceitos penais faz sentido nem tem como ser aplicado, simplesmente porque são conceitos morais: ação, intenção, responsabilidade, direito, dever, excusa, previsibilidade, responsabilidade, punição etc.
Não quero que pareça que sou o filósofo chato, que fica fiscalizando os eventuais lapsos de expressão de meus colegas professores. Na verdade, sou seu amigo e admirador, e quero colaborar com você, acentuando, por pouco que seja, a clarividência de que você já é fartamente dotado em assuntos penais.
Espero por um comentário seu.
Márcio, a postagem não foi uma aula, mas um desabafo. Aula, mesmo, só amanhã. Mas gostaria de conhecer as atrocidades a que te referiste. Podes me mandar para o e-mail pessoal.
André, sinto-me especialmente honrado quando te encontro por estas paragens. De fato, mereces e terás uma resposta ao que escreveste. Só que não pode ser durante a semana, pela minha falta de tempo. Há que refletir muito antes de te responder. Além do mais, tu percebeste claramente que a tônica do meu texto era afirmar que uma norma jurídica não pode obrigar ninguém a adotar certo padrão moral, ou puni-la por não o ter feito. Se o público não filósofo percebeu isso, por ora me basta.
Amanhã, depois das leituras das monografias, volto aqui para te dizer algo mais conclusivo.
Acrescentei o seu Blog à lista de links do meu. Estou pensando em novas formas de propagandeá-lo ainda mais. Abraço!
Quanta honra, André! Quer dizer que eu ando merecendo divulgação, é? Mas se os filósofos começarem a me visitar e verem as besteiras que escrevo, vais queimar o teu filme com os teus amigos! Abraços, caríssimo! Temos que marcar um papo pessoal - mas isso, claro, só depois das famigeradas provas...
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