segunda-feira, 19 de novembro de 2007

Sentimentos por decreto

Já pensou se o governo pudesse editar uma lei obrigando você a amar uma certa pessoa? Ou a deixá-la? Ou se a tal lei determinasse que todos os pais e mães devem amar os seus filhos na mais pura igualdade, sem o menor laivo de preferência? Ou, ainda, determinando que todos somos obrigados a nos sentir realizados no trabalho que hoje desempenhamos?
Você dirá que qualquer uma dessas proposições é absurda e simplesmente inviável, porque irreal, porque desatende ao que se passa no coração e na mente das pessoas. Concordo. E vou além: afirmo que a essas proposições se equivale à proposta de mudar a legislação de trânsito, para determinar que os causadores de acidentes sejam considerados autores de crimes necessariamente dolosos. O tema sempre vem à tona quando acidentes dramáticos magoam a sociedade. E o número de acidentes sempre aumenta nos feriadões.
Para quem não está habituado à linguagem jurídica, uma síntese rasteira: dolo é a vontade de praticar uma conduta (ação ou omissão) que se avalia como danosa a alguém. Como toda vontade, pressupõe um conhecimento sobre o objeto, porque não se pode querer aquilo que se desconhece. Já a culpa é a efetiva prática de um dano que não se desejou, mas que acabou ocorrendo porque o indivíduo realizou conduta descuidada e perigosa, abdicando de procedimentos de cautela que qualquer um tomaria na situação em que o agente se encontrava.
Uma pessoa que manipula uma arma de fogo carregada e permite que ela dispare, matando alguém às proximidades, tanto pode ter agido com dolo quanto com culpa. O mesmo se diga de quem, no mês de julho, solta um balão e provoca um incêndio de largas proporções. Ou quem convida uma pessoa para atravessar um rio, ciente de que a mesma não se sentia segura para nadar, e cria as condições para um afogamento, que acaba se consumando. Somente em cada caso concreto podemos avaliar se o agente teve dolo ou culpa. Não posso predeterminar isso por lei. À toda evidência, nos delitos de trânsito, o mesmo raciocínio deve ser utilizado. Por que seria diferente?
Esclareço que não tenho nenhum interesse na prevalência de qualquer tese, seja profissional, seja pessoal. Não sou vítima nem causador de acidente, nem parente ou amigo de vítimas ou de causadores de acidentes. Jamais advoguei nessa área. Minha preocupação advém da minha condição de professor e significa tornar clara a racionalidade que deve presidir as decisões penais. Em qualquer caso, contudo, sou solidário às vítimas e a quem as cerca e entendo que os culpados devem ser punidos exemplarmente, porém de acordo com o que realmente fizeram.
Além da perda de racionalidade, custaria caro à clientela do Direito Penal se pré-estabelecêssemos este ou aquele estado mental para um indivíduo. Aqui não há espaço para agir com o coração. Podemos ter o desejo de ver o assassino de nosso ente amado 20 anos na cadeia. Mas se o crime foi culposo, foi culposo e ponto final. No máximo, 3 anos de detenção. Da mesma forma que quem surrupia nossa carteira, furtivamente, levando todo o salário do mês e nos deixando na indigência, deve ser condenado por furto e não roubo, já que não praticou violência.
Estas são alegações muitíssimo incipientes. À medida que as pessoas se manifestem, podemos conversar mais demoradamente a respeito.

4 comentários:

morenocris disse...

Caramba, Yúdice. Bom dia.

As leis já existem.

Para quem ama - casamento.
Para separação - divórcio.

Beijos.

Yúdice Andrade disse...

Pelo menos para os setores mais delicados da vida, Cris. Beijo.

Anônimo disse...

Denovo eu aqui hehe

Estou ficando chato já hehe

Com relação ao seu post mais uma vez me fez pensar hehe

Eu sou contra a idéia de crime doloso em trânsito, no caso eventual, como tem entendido o nosso "gradiosíssimo egrégio" hehe

Acredito que 3 anos é tempo mais que o suficiente para que a pena medre o sentimento de culpa no agente. Não me alegra o caráter retributivo da pena, implícito no ordenamento penal brasileiro, vez que adota, pelo que sei, a teoria mista.

Claro que o dolo eventual está intimamente ligado à previsibilidade objetiva, ou seja, o agente poderia prever que de sua conduta poderia resultar num crime.Creio que este é um dos fatores que pode tanto caracterizar como descaracterizar o dolo eventual.

No caso concreto de dolo eventual em homicídios decorrentes do trânsito, se levarmos em conta uma pessoa que há 30 anos dirige e em geral dirige acima dos 100 Km horário, ela ao meu ver, nunca poderá prever que tal fato poderá ocorrer, porque confia piamente em suas habilidades. Diferentemente de um jovem cuja a experiência é um atributo que não lhe confere, e ainda embriaga-se e causa a morte de outrem, é razoável aplicar o dolo envetual.

Porém acho perigoso a aplicação de uma pena muito alta, posto que é sabido que ninguém comete ou deixa de cometer tal conduta por simples "medo da lei". A questão é que justiça no Brasil, virou sinônimo de retribuição. As pessoas somente saceiam sua vontade de vingança quando vêem um "assassino" de seus familiares nas cadeias e muitas vezes não admitem certos acidentes como fatalidade, almejam sempre que haja culpado. Não poderiam pensar diferente, afinal a cultura nos ensina a sermos assim.

Grande Abraço!!! Primo!!!

Yúdice Andrade disse...

Nunca chato, primo. Pelo contrário. Faço o blog para ter retornos como o teu e, devo dizer, fico satisfeito de ver que a tua linguagem está assumindo tons progressivamente jurídicos. Não no lado negativo, da boçalidade, mas no lado positivo, da técnica. Noto que alguns conceitos estão começando a ficar naturais no modo como desenvolves os teus raciocínios. Excelente.
Quanto ao mérito, ficou-me a impressão de que consideras os crimes de trânsito culposos, essencialmente, o que pode ser também uma padronização indevida. Por mais trabalhoso que seja, precisamos encarar a questão caso a caso. Desculpa se entendi errado.