quarta-feira, 14 de novembro de 2007

Vida sem perspectivas

Ontem, quase à meia noite, eu e minha esposa paramos em frente a uma loja, a fim de entrar no carro. Lancei um breve olhar à vitrine. Apesar de breve, esse olhar foi percebido pelo flanelinha que se aproximava e foi logo explicando que o traje composto no manequim custava, ao todo, mais de 900 reais. Tratava-se de camisa, uma jaqueta (para o clima de Belém?) e calças jeans. Ele sabia dizer o preço de cada peça e o somatório.
Perguntamo-nos, no trajeto para casa, se ele conhecia aqueles valores apenas porque os via o tempo todo, porque passa muitas horas em frente à loja, ou se, talvez, ele já se postou diante da vitrine sonhando em, um dia, poder cobrir o corpo com uma beca daquelas.
Se sonhou, convenhamos, é um sonho com remotas possibilidades de realização. E isso sempre foi algo que me assustou muito: pior do que ter ou não ter dinheiro para alguma coisa, é não ter a perspectiva de mudar a conjuntura em que nos encontramos, não vislumbrar uma vida diferente, uma melhoria à frente. Já pensou? Você se imagina daqui a cinco, oito anos, e o que vê é a mesmíssima situação de agora. Para mim, é assustador.
Assim pensando, até senti alguma simpatia pelo flanelinha sem nome, que falou comigo tão educadamente. Até me arrependi um pouco pelos 75 centavos que lhe dei, mesmo consciente de não precisar dar-lhe absolutamente nada. É da minha natureza me condoer com as misérias humanas. Não suporto ter que conviver com essas disparidades: frente à frente, a opulência e a penúria, coexistindo como se fosse a coisa mais normal do mundo.
Não é. Ao me deitar para dormir, pairava ante meus olhos uma imagem fictícia do flanelinha olhando fixamente aquele manequim. E depois indo embora, arrastando suas sandálias. Como seria bom se ele pudesse, amanhã, conseguir ao menos uma fonte de renda honesta capaz de lhe suprir as necessidades.
Bom seria.

5 comentários:

Anônimo disse...

Não é só o flanelinha que não pode comprar este conjunto. Convenhamos que hoje em dia não é fácil tirar das despesas diárias 900,00 reais, para ´comprar uma roupa, tendo em vista inúmeras necessidades mais importantes do dia a dia.
É uma pena mas muita gente ficaria só no sonho.

Yúdice Andrade disse...

Tem razão, anônimo. Também pensei nisso, claro. Pensei até em mim mesmo. Eu até poderia gastar esses 900 reais numa roupa, mas não me vejo fazendo isso. Se o fizesse, decerto me sentiria muito mal. E olha que, por força da profissão, preciso usar terno, o que me força a compras de valor elevado. Mas há alternativas de bom custo-benefício.
Mesmo que estivesse sobrando, não me imagino comprando um terno de cinco mil reais. Acho um desperdício. Mas muita gente acha que tenho mentalidade de pobre.

Blog do Paraense disse...

Yúdice

Gastar cinco mil reais na compra de um traje é uma grande banalidade. Nisso concordo contigo. Muitas pessoas ao longo de uma ano inteiro de trabalho (salvo engano, 60% da população paraense) não conseguem ganhar este valor.
Um traje que custe tal quantia mostra como a relação valor de uso / valor de troca / valor simbólico se encontra desequilibrada em nossa sociedade.

Antônio Paraense

Frederico Guerreiro disse...

Cuidado! Tem flanelinha que ganha mais do que muito assalariado e é esperto: vai comprar a mesma coisa mais barato lá no centro.

Yúdice Andrade disse...

Absolutamente correto, paraense. Só posso ratificar.

Tens razão, Fred. Mas convenhamos: ninguém vai longe nessa vida, certo?