O Procurador de Justiça gaúcho Lênio Luiz Streck escreveu, há alguns anos, um livro chamado Tribunal do júri: símbolos e rituais. Nele, explica a ritualística engendrada há séculos para essa instituição judiciária, que viabiliza a efetiva participação popular na administração da Justiça. Afinal, no sistema brasileiro, enquanto o Executivo e o Legislativo são compostos por mandatários eleitos, o Judiciário é composto por técnicos, recrutados através de suposta demonstração de habilidade (pelo menos após a consagração dos concursos públicos). Obviamente, o que escrevo agora está num plano ideal, para ser sintético. Sabemos que na prática a teoria é diferente.
O tribunal do júri é uma espécie de ícone da simbologia estatal. A mesa do juiz fica num plano mais alto e olha de cima o amesquinhado réu, minúsculo em sua cadeirinha, de costas para os seus julgadores e para a assembleia. Os jurados também se sentam de costas para o público, simbolizando a suposta isenção de ânimo. O Ministério Público fica à direita do juiz, deixando escapar o atrelamento que sempre houve entre o Estado que acusa e o Estado que julga. Atualmente, não pode haver diferença de tratamento entre acusação e defesa, mas isso sempre foi e continua sendo balela. Basta ver como os juízes se confraternizam com os promotores de justiça, ao passo que tratam os advogados em geral com desconfiança e frequente má vontade. O promotor chega para uma audiência e vai logo entrando, manuseando os autos, usando o telefone. O advogado precisa ser convidado e receber autorização para tudo. Distorções inconfessas, mas inegáveis.
Tudo que se faz no plenário do júri cumpre uma missão de influenciar o ânimo dos jurados que, vale lembrar, são leigos. De regra, nada entendem de Direito e estão ali para dar um veredito de acordo com sua própria miopia acerca do mundo. Por isso, muitos juristas propõem requisitos mais rigorosos para seleção de jurados, a fim de garantir um pouco mais de qualidade nas decisões.
Tudo isto é para manifestar meu desagrado diante do circo de horrores em que transformaram o tribunal do júri de Belém, com a exibição de blocos de concreto, camburões e demais artefatos usados para assassinar e ocultar os corpos dos irmãos Novelino. Naturalmente, do maior interesse do Ministério Público. A visão desses instrumentos bota os jurados a pensar no crime em si, a visualizar a cena e, assim, compreender melhor o sofrimento experimentado pelas vítimas. Com tais monstruosidades no pensamento, a condenação fica quase certa, porque o julgamento de questiúnculas jurídicas fica prejudicado pela emoção.
Não sei se faria isso, caso fosse o promotor do caso. Acho que não precisa e sou avesso a esse tipo de espetáculo. Mas o júri é o teatro do Direito. Está nele quem gosta de aparecer.
Por fim, se eu fosse o Cardias, teria negado simular o estrangulamento das vítimas. Em pleno salão, um voluntário se deitou no chão para reproduzir a cena. Horrível. Com certeza, Cardias aceitou isso de olho na delação premiada, que acabou não recebendo. Só conseguiu mostrar aos jurados como é mau. Assinou a própria sentença e, de quebra, ganhou um aumento de pena.
Mas circo é isso. Faz o melhor espetáculo quem não tem medo de ousar. Só que, neste caso, o final não é o aplauso.
4 comentários:
Yúdice, teu post meu lembrou de um livro de Pietro Calamandrei chamado "Eles, os juízes, vistos por nós, os advogados". Em determinado trecho, Calamandrei discorre sobre o que chama "a eloqüência do pretório" - ou a "teatralidade do pretório"; a memória me trai - e que nada mais é do que esta verve de ator que o advogado e o promotor de tribuna sempre têm. A grandiloqüência dos atores judiciários é avultada pelas vestes, que sempre têm mangas enormes, como se prontas a transformar o ocupante da tribuna em um enorme pássaro, a sobrevoar a ignorância dos jurados e a indigência dos réus.
O interessante é que ele conclui que, quanto maior o gestual, menos conhecimento tem o jurista. Mais ou menos como no dito de que "quanto maior o anel, mais burro o bacharel".
Ahahah...perfeitos, o post e o comentário.
Aqui entre nos, nada como "bachareis sem anéis", como vcs.
Endosso sem reparos o teu comentário, Francisco. A teatralidade do júri, assim como, de resto, a grandiloqüência do que não precisa sê-lo, costuma esconder (ou tentar) a falta de conteúdo. É preciso que as pessoas saibam disso, para não se deslumbrar com o vazio e dar ganho de causa a essas mesquinharias.
Juvêncio, grato pelo elogio. Tento manter o anel pequenino.
Mas por que o comentário foi excluído? Ao publicá-lo, ia comentar alguma coisa. Que pena.
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