A primeira coisa que preciso deixar claro é que admiro profundamente do programa "Começar de novo", do Conselho Nacional de Justiça, que pretende convencer a perversa e egoísta sociedade brasileira a dar uma nova chance aos ex-presidiários, como condição essencial à ressocialização dos mesmos. Já até escrevi um elogio aqui no blog.
O segundo esclarecimento diz respeito ao fato de que, fugindo ao maniqueísmo racial, repudio a prática — acirradíssima em países como os Estados Unidos e menos definida no Brasil — de reduzir os fenômenos sociais a uma questão de conflito por motivo de cor. Na terra de Barack Obama, se um branco critica um branco, é liberdade de expressão; se critica um negro, é racismo. Despedir um negro é racismo. Dizer que uma pessoa negra fez algo errado tem como única motivação menosprezá-la por sua cor. E por aí vai.
Eu seria um rematado idiota se minimizasse a discriminação e a violência histórica contra os negros, mas não posso concordar com o simplismo irracional de reduzir as incontáveis variáveis sociais a isso. Eu ficaria furioso se, numa seleção de estagiário, p. ex., com um candidato negro e outro branco, eu fosse tachado de racista por preferir o segundo. Será que, eventualmente, ele não poderia estar mais de acordo com o perfil procurado?
Sem fugir mais do tema, segue a minha questão.
Ontem, dei de cara com o seguinte cartaz do programa "Começar de novo":
A palavra "trabalho" está do lado em que o homem aparece branco e barbeado. A "volta ao crime" comparece do lado escuro e mal cuidado. Está evidente que se trata apenas de uma colorização diferente, tanto que até o fundo da imagem também altera o claro e o escuro — e desde os contos de fada aprendemos a relacionar a escuridão ao mal. É nítido, também, que se trata do mesmo homem, caucasiano, submetido a um jogo de cores. Tais cores, porém, querem passar uma mensagem.
A primeiríssima coisa que me passou pela cabeça quando vi o cartaz, que cheguei a comentar com o amigo que me acompanhava, foi a preocupação que alguém associasse a volta ao crime ao fato de ser negro.
Acredito que, apesar de bem intencionada, a arte não foi muito feliz, porque dá margem a críticas desnecessárias ao CNJ. A última coisa que o programa precisa é de gente bradando que ele constitui uma iniciativa da elite branca falsamente preocupada com justiça social, em favor dos negros tão propensos ao crime, deturpação que comprometeria a credibilidade de uma iniciativa tão importante.
Acessei o sítio do CNJ para colher a imagem do cartaz e topei com este banner:
Dois homens: um branco e um negro. Ambos sorriem placidamente, mas a mensagem é clara: um vai dar emprego ao outro. E quem é quem? O texto menciona a palavra "empregos" antes de "ex-detentos". E a imagem do homem branco aparece antes da do negro. Se entendi alguma coisa do que li há anos sobre a semiótica nos cartazes de cinema, esta relação pode ser feita.
Não sei se o CNJ resolveu botar o dedo na ferida e, num rasgo de sinceridade, escancarar o fato notório de que a esmagadora maioria da população carcerária brasileira é composta por negros e que isso acontece não porque sejam mais propensos à criminalidade, como sustentava Cesare Lombroso, e sim porque, arrastados à marginalização, o crime se torna um caminho previsível. Seria até valioso que o CNJ assumisse a questão assim, com toda essa brutal realidade. Mas deveria avisar todo mundo, para evitar as mensagens subliminares e a exploração irresponsável de seus atos.
Gente mal intencionada por aí não falta.
14 comentários:
Yúdice,
sabes que sou radical e as vezes extrema na defesa dos direitos humanos, sem ser truculenta. No entanto acredito que de fato nao pegou muito bem...tens razão e acredito que vai ter reação do movimento negro do Brasil.
Prezado Amigo,
Analisando bem, vejo que tens razão!
A priori, pensei: "Não, que nada". Todavia, acredito que esta "cultura" está no consciente coletivo, seja de quem ofende, seja de quem se sente ofendido.
Esta nelvragia crônica pertuba os sentidos!
Talvez, o CNJ nem tivesse a intenção de promover a discriminação, mas a sua propaganda é tendenciosa a uma interpretação pejorativa.
Qual o grupo social que compõe o CNJ? "Brasileiros de Brasília".
Então, mesmo de uma Instituição tão valorosa, podem sair "coisas" sem valor!
Já imagine só: Um negro dando emprego para um branco?!
Isso é Brasil e devemos conviver com isto, mas antes de tudo, lutar para mudar esta situação. Luta esta cujo início é no imo de cada um de nós, e depois voltarmos os nossos olhares para a coletividade.
Ahhhh meu amigo, muito obrigado pela "aula" sobre semiótica.. Muito interessante!
Concordo contigo em grau, gênero e número. Acho que devemos separar o que é discriminação do que é escolha. Nem sempre a escolha é uma discriminação.
A maneira como certos políticos têm tentado resolver os problemas sem resolver o causador deles, ou seja, a base, não nos levará a lugar algum... Soluções imediatistas não resolvem os problemas, criam-se outros. Por exemplo, porque não investir na educação básica e deixar que os menos favorecidos lutem de igual para igual uma vaga nas Federais? Cota só leva gente despreparada para dentro das universidades que acabam formando péssimos profissionais...
Ana Miranda
Yúdice,
me esqueci de assinar meu post, o primeiro daqui.
ass: Anna Lins
Nem precisava assinar, Anna. Eu sabia que era tu. Aguardemos para saber se o movimento negro dirá alguma coisa. Até o presente momento, silêncio.
Imagino que essas sejam algumas das críticas que poderemos escutar, Liandro. No mais, o que escrevi mal vale para um papo no barzinho, que dirá para uma "aula"!
Ana, afora o caso das cotas, o que exatamente você considerou uma solução imediatista, no caso?
Prezada Ana,
Ok! Concordo com o investimento em educação básica!
Todavia, enquanto não houve tal investimento, o que fazer? Nada? Nenhuma tentativa? Nada para minorar a condição?
Até mesmo a peneira diminiu o ardor do Sol causticante!
Abraços.
Yúdice, tudo, esse monte de bolsa não sei o quê, que andam distribuindo, nós, brasileiros temos a mania do imediatismo, queremos resolver os problemas ontem ao invés de pararmos, pensarmos e traçarmos um tática a longo prazo, mas eficaz. Acho que estrapolei no meu pensamento em relação ao que vc escreveu. Desculpe-me.
Caro Lizandro, nunca é tarde para consertar. Comecemos agora a melhorar a educação básica. O que está feito, não tem mais jeito, sigamos com as tais cotas...
Concordo contigo que até a peneira ameniza o calor do sol, mas em compensação, nos deixa com marcas de bolinhas. Ninguém gosta de ficar marcado...
Yúdice, só depois eu vi que vc perguntou "no caso". Para mim, solução seria evitar que essas pessoas fossem presas. Estou falando de pessoas que não têm oportunidade na vida, dando a elas a chance de ter esses empregos antes de cometerem seus crimes, entendeu???
Caro Yúdice,
Fiquei sabendo que o Governo daqui de São Paulo baixou um decreto ontem estabelecendo que nas contratações realizadas por órgãos ou entidades estatais, os editais de licitação devem exigir das empresas, quando o objeto do contrato requerer o emprego de no mínimo 20 trabalhadores, que preencham 5% do total de vagas com detentos e ex-detentos.
Ouvi em relação a esta medida a seguinte crítica, que reputo egoísta e estapafúrdia: se o Estado produz o monstro (devido a condições precárias dos presídios) não pode transferir o ônus para as empresas privadas. (!!!)
Pelo teor do comentário não sei onde vamos parar!
Bom, ainda estou alinhando minhas idéias a esse respeito, mas à princípio gostei da iniciativa do Estado de São Paulo.
MUUUUIIITAS saudades de ti.
O blog continua sensacional!
Beijoss!
Tônia
Foi muito legal ter encontrado sua sala virtual, especificamente falando disso! Achei que tinha sido a única a ficar indignada!
Abraço!
Jux, eunão fiquei indignado, porque não considerei ofensiva a campanha; apenas equivocada em sua apresentação. Mas fiquei preocupado com a possibilidade de as intenções do CNJ serem menosprezadas.
Sua manifestação me fez ver que minha preocupação tinha fundamento. Não era "chifre em cabeça de cavalo". Obrigado e volte sempre.
Claro! Entendi que você não ficou indignado com a Campanha! E digo que a Campanha EM SI é absolutamente louvável. Só que fico indignada mesmo com a foto que ilutra a Campanha. Pode ter sido um erro de diagramação, claro. Só que se for apenas um mero erro já serve pra comprovar como a idéia de associar o negro, a escuridão às coisas ruins (uma das premissas do recismo) já está tão sedimentada no incosciente da maioria das pessoas que elas nem notam mais. E quando as pessoas implicam - e confesso sou CHATA E CRICRI com relação ao politicamente correto - os demais acham que estamos vendo chifre em cabeça de cavalo. Só que quem não é alvo dos preconceitos dificilmente tem esse tipo de apreensão, por nunca ter vivenciado isso "na pele". Parabéns pelo blog e já vi que tem muito assunto interessante escrito por você!
Olá Yúdice;
Por coincidência achei seu blog, pois ao ver em um blog de um conhecido (por sinal Juiz) o banner da campanha, imediatamente me "acendeu o sinal amarelo" e vim ao google atrás de reações na web e verificar se o CNJ teria mantido o mesmo.
Sou do Judiciário, negro e ativista do movimento há 22 anos e até então não havia visto nenhum comentário sobre a questão..., na realidade creio que por a campanha ter começado no mês de festas e férias e não ter tido ainda grande repercussão, simplesmente passou desapercebido, ninguém do movimento notou, por isso não houve a reação esperada.
Concordo com boa parte da sua análise, mas o fato é que essa associação de claro com o bem e escuro com o mal é no mínimo dúbia e nociva à tentativa de reverter o preconceito "racial" e de estabelecer uma nova ótica (se não positiva pelo menos não depreciativa) sobre o negro.
Muitas pessoas brancas tem o "costume" de dizer que negros e principalmente os ativistas são "paranóicos" e "complexados" e que "enxergam chifre na cabeça de cavalo"..., mas o fato é que " Melanina na pele dos outros é refresco"; só quem não está do lado atingido pela violência psicológica e as vezes sutil, "não sente nem percebe" o racismo aberto ou velado, efetivo ou simbólico que permeia a sociedade brasileira.
Vou escrever um post sobre a questão em meu blog e repercutir para o resto do MN, mas a reação não deverá ser muito diferente,nem gerar "extrema indignação", a maioria deve seguir a linha de visão que já demonstrei e equilibradamente alertarão o CNJ e sociedade sobre os riscos dessa utilização nociva da semiótica.
Ao contrário do que os "neo-democratas-raciais" anti ações afirmativas festejados pela grande imprensa, disseminam, o MN tem uma causa justa e pessoas conscientes da realidade e da necessidade de muda-la, primária e preferencialmente de forma embasada, pacífica e ordeira, mas firme e determinada.
Bom é isso, abraço e sucesso .
Pronto Yúdice, já fiz o post em meu blog : http://blogdojuarez.amazonida.com/wp/?p=785
Não te citei diretamente por não ter feito cópia "ypsis literis" de conteúdo próprio,além do mais isso pode vir a "dar pano para manga"... :-)e haver "incompreensões" e exageros por todos os lados...
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