Como prometido, prossigo em minhas observações.
6. Dentre os delitos contra a liberdade sexual, dois podiam ser praticados através do meio executivo fraude. Caso a conduta do agente se destinasse a obter conjunção carnal, caracterizava-se a posse sexual mediante fraude. Caso se destinasse aos demais atos libidinosos, atentado ao pudor mediante fraude. O grande nó desses crimes era que eles somente poderiam ser praticados contra "mulheres honestas".
7. A ideia de fraude, em crimes sexuais, por si só me parece estranha. Consolidou-se entre os penalistas a tese de que haveria o delito quando a vítima fosse enganada quanto à identidade do agressor. Imagine: transar com uma pessoa pensando tratar-se de outra. Os autores antigos caprichavam nos exemplos com irmãos gêmeos. Dar aula sobre isso sempre provocou crises de riso ou o sentimento de que estávamos dentro de uma novela. Pior era o exemplo do homem que, invadindo uma residência durante a noite, inclusive usando o perfume do marido da vítima, deitava-se com ela. Citando essa hipótese pitoresca, escutei de uma aluna: "Vai me dizer que ela não reconhece o tamanho, por acaso?!" E dá-lhe risada...
8. A outra modalidade de fraude ocorre quando a vítima é enganada quanto à legitimidade das relações sexuais. Para compreender isso, entretanto, temos que distinguir sexo legítimo, que é aquele realizado no casamento, do ilegítimo. Esta perspectiva já torna a discussão bastante defasada. Pelo menos, ficava mais fácil compreender o delito, pois ele estaria presente nos casos de simulação de casamento, que em tempos avoengos homens utilizavam como artíficio para conduzir à cama as mulheres que faziam o gênero só-depois-de-casar. Os noveleiros saudosistas talvez se lembrem que foi isso que Rogério Guerreiro (Cláudio Marzo) fez para transar com Debbie Day (Christine Nazareth), na novela Cambalacho (1986). Hoje, com o sexo generalizado na juventude e sem compromisso, esta hipótese também fica bastante esvaziada.
9. Se a posse sexual mediante fraude parece desafiar a nossa tolerância, o atentado ao pudor é extremamente verossímil. Atrevo-me a dizer, por minha conta e risco, que ele ocorre com muito mais frequência do que imaginamos. Afinal, como admite qualquer tipo de ato libidinoso, fica fácil imaginar uma situação em que a vítima não percebe a tempo que está sendo bolinada, favorecendo a concretização do abuso. Basta pensar num personal trainer que, supostamente orientando a vítima sobre o modo correto de fazer exercícios, aproveitasse para tocar em suas partes íntimas.
10. O exemplo mais cruel, contudo, é dos profissionais de saúde, principalmente médicos. Durante consultas, a vítima pode ficar completamente à mercê das taras de um doente. Ouvi falar de um ortopedista que mandava as pacientes tirarem toda a roupa para ele examiná-las e, a pretexto de fazê-lo, alisava-lhes os corpos. Para ginecologistas, esse tipo de ataque é facílimo, pois a vítima, já constrangida pelo tipo de exame, pode demorar a perceber que há alguma coisa de errado. Avaliar se a postura do profissional é criminosa é muito difícil e provar o abuso, mais ainda. Por isso, todos devem procurar médicos dos quais tenham boas referências e exigir que eles expliquem cada passo que deem, a fim de construir um relação de confiança.
Vale lembrar que Eugênio Chipkevitch era o maior hebiatra brasileiro, autor de trabalhos científicos respeitados no mundo inteiro. E hoje ele é um presidiário, condenado a uma pena de 124 anos de reclusão por haver drogado dezenas de adolescentes do sexo masculino para submetê-los à cópula anal — e ainda filmava tudo, perversão final que custou a sua reputação e sua liberdade.
O assunto rendeu. Farei uma terceira postagem.
Acréscimo em 16.9.2011
Mais uma vez, ressalto que a descrição aqui feita dizia respeito ao tratamento da matéria antes da Lei n. 12.015, de 2009. Os delitos sexuais fraudulentos foram unificados no tipo de violação sexual mediante fraude, que também não leva em conta o sexo dos envolvidos.
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