Foi-se o tempo em que a infância era associada à inocência. Foi-se, também, o tempo em que a atitude mais grave dos adolescentes era tentar ver, à distância, alguma vizinha pelada. Nos últimos anos, o Código Internacional de Doenças — o famoso CID — engordou significativamente. Assim como a obesidade é uma epidemia mundial, o número de doenças descritas nas últimas duas décadas impressiona. O mesmo ocorre com os agravos à saúde mental (para que também é referência o Diagnostic and Statical Manual of Mental Disorders — DSM). Não apenas os transtornos mentais propriamente ditos, que retiram a lucidez do paciente, mas também os transtornos de comportamento. Entre esses está o Bullying (palavra sem correspondente na Língua Portuguesa), típico de crianças e adolescentes, daí a premissa deste texto.
O bullying se caracteriza por agressões deliberadas e reiteradas, cometidas por jovens, provocando angústia, humilhação e mesmo danos físicos às vítimas, normalmente indíviduos menores e mais frágeis, incapazes de se defender. A violência pode ser verbal, física, psicológica e até sexual. Vai desde a colocação de apelidos ofensivos até atos verdadeiramente criminosos, como destruição de objetos, roubos e agressões pessoais. Não há motivos determinantes, além do desejo de extravasar uma relação de poder artificial e cruel. Clicando aqui, você lê um bom artigo a respeito.
A prática do bullying é crescente. Vê-se isso nas escolas públicas, através de fatos criminosos que ganham os noticiários. Mas também se vê nas melhores escolas privadas — só que, nesse caso, sob as bênçãos do sigilo obsequioso, que garante a esses marginais-teens a impunidade necessária para que se especializem e pratiquem horrores cada vez maiores. Afinal, são as próprias famílias que deixam o adolescente pensar que a vida não nos impõem limites (quanto mais endinheiradas, mais perceptível é essa anomalia). E a escola, que devia ter o papel de educar, cumpre seus propósitos comerciais e de modo algum toma medidas à altura dos casos, para não contrariar seus honoráveis clientes.
Ontem à noite, conversei com uma amiga que possui um filho de 14 anos em uma das escolas mais idolatradas da cidade. Ele mesmo sofre consequências do fato de não ser tão rico quanto a média dos colegas. Já teve um álbum arrancado de suas mãos e, embora seja disputado na hora de fazer trabalhos, por ser um ótimo aluno, é sistematicamente ignorado para as demais atividades. É um bullying leve, caracterizado pelo isolamento forçado. Mas assim que começou a frequentar essa escola, presenciou uma cena que o afetou: alunos da 8ª série fizeram um corredor polonês e espancaram um menino da 5ª, que precisou ser atendido na enfermaria. E foi o próprio adolescente quem manifestou à mãe sua absoluta indignação com as consequências da agressão: os vagabundos foram obrigados a escrever uma redação sobre solidariedade. Tão somente isso. Imagino o que eles diziam uns aos outros enquanto produziam suas mal traçadas linhas.
No final do ano passado, na mesma escola, meninas (quem disse que as mulheres não são violentas?) levaram de casa tesouras e atacaram uma colega, picotando completamente o seu cabelo. Este caso se tornou um processo judicial, por atuação da família. A escola mantém-se investindo nos valores cristãos...
Curioso como, nessas horas, não aparece ninguém para pedir a redução da maioridade penal. Por que será? Povinho maniqueísta e hipócrita esse nosso!
Preocupa-me que meu prazo de carência é relativamente curto. Mais à frente, precisarei encontrar uma escola para minha filha. Não bastassem os delírios de projetos supostamente pedagógicos, concretamente malucos, ainda tenho que recear o próprio alunado. Precisamos reagir. Mas como fazê-lo, se a maioria das pessoas, quando se depara com esses atos de violência, conclui logo que é bobagem da juventude?
PS — Violência contra pessoas menores e indefesas, praticada na juventude, é um dos indicativos de psicopatia.
4 comentários:
Professor, o bullying é uma prática tenebrosa. Digo, pois senti na pele uma "leve" experiência deste tipo de prática. Isto é algo terrível professor, capaz de acarretar inúmeras conseqüências psicológicas para a criança ou o adolescente, dependendo de como cada um reage, é claro. Nestes casos, acredito que o Estado deveria exercer seu poder repressor e impor medidas tanto para as famílias quanto para as escolas, para que vejam que realmente se trata de algo sério. Nas escolas Norte-Americanas o bullying já vem sendo reprimido, pois já se conhece suas conseqüências. Acredito também que isto não tem a ver em grande parte com as condições econômicas da família, e sim com preceitos morais e educacionais aos quais a criança e o adolescente são submetidos em sua criação, sem limites e sem respeito ao próximo.
Abraços
Yúdice, concordo com o Leo. O bullyng nada tem a ver com as condições econômicas da família do jovem infrator e nem é exacerbado por este fator. Falas deste temor talvez porque os casos que conheças, tendo ocorrido em escolas privadas e caras, são mais próximos de nós.
Porém, não se pode esquecer que nas escolas públicas crimes também ocorrem. Só nestes últimos dois anos, que me lembre, uma menina matou a facadas uma colega dentro da sala de aula e um garoto matou outro (ou um professor, não estou certo) a tiros, entrando na escola com uma arma na mochila - além de vários outros casos não tão graves, mas significativos. Tudo ocorreu em escolas públicas, na periferia pobre da cidade. Não houve nada parecido em escolas privadas.
Reafirmo o que disse em outra oportunidade: há, em curso, uma crise de humanismo, que desborda para a violência entre os próximos. Há várias instâncias da sociedade que devem atentar para o fato, pois têm responsabilidade em deter o avanço deste espectro. E não falo só da Administração Pública.
Abração.
Meus amigos Leo e Francisco, ao redigir o texto como se encontra, eu já esperava resistências. Ouso, contudo, dizer que vocês estão equivocados. A associação que faço é verdadeira, sim.
1. Observem que o texto menciona primeiro as escolas públicas, afirmando que os casos chegam ao conhecimento do grande público. Isso ocorre porque os casos são até mais graves. O caso mencionado pelo Francisco, de esfaqueamento, foi justamente no que pensei. Mais remotamente houve outro caso de tentativa de homicídio, salvo engano no Vilhena Alves. Portanto, defendo-me sustentando essa premissa. E acrescento que deve haver muitos outros casos, de menor envergadura.
2. Todavia, nas escolas privadas o Bullying comparece sob outra forma, que pode não chegar a ser violenta. Refiro-me aos horrendos códigos de inclusão e exclusão de pessoas. Nesse caso, os códigos de consumo são determinantes. As roupas, o celular, o carro da família, a dentição - tudo é motivo para denunciar a condição econômica de uma pessoa que, por isso, torna-se alvo de menosprezo e ridicularização. Isso é Bullying, mesmo que ninguém bata no garoto. Os dois episódios de violência que mencionei talvez nem tenham sido determinados por esse motivo.
3. Por isso, acredito que os fatos estão aí para corroborar minha afirmação. Até porque, admitamos ou não, é sim nas classes socialmente mais abastadas que vemos uma tendência mais nítida à hipervalorização de casta, sobrenome e outros quetais que só se tornam decisivos em uma sociedade doente. A lógica do você-sabe-com-quem-está-falando, que é um dos pilares desse transtorno de caráter.
Podemos continuar debatendo. Mas eu topo ir a campo para demonstrar minha afirmação. Abraços aos dois.
Caros Yúdice e Francisco:
faz pouco tempo que me apercebi do bullying como uma "atividade". As notícias eram raras e depois começaram a ser mais sistemáicas na imprensa. Mas, desde o início, me pareceu uma manifestação tão antiga quanto andar pra frente: o bullying é a sofisticação da discriminação. Econômica, social, racial, étnica.
A troca de idéias de vocês me induz a um palpite: o bullying não tem outra causa que ele próprio. É a maldade pela maldade, a infringência da humilhação ou da dor por si só.
Os crimes citados tinham motivação espúria, mas tinham: ciúme, rivalidade. Eram "crimes objetivos". Parece-me que o bullying não tem isso. Ou melhor, tem: o exercício da maldade como fonte de prazer.
Quannto á Júlia, Yúdice, você tem razão para preocupar-se. É fácil transmitir valores morais para as crianças, pelo exemplo e pela palavra. Mas é preciso muito esforço e permanente atenção para ampará-las quando os exemplos e as solicitaçõe do mundo os atraem para o outro lado.
um abração pra vocês. Beijinho pra Júlia.
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