terça-feira, 21 de outubro de 2008

Debate sobre o direito de morrer

Cheguei em casa há pouco mais de uma hora. No caminho, vim matutando sobre a última aula que ministrei. Na verdade, tivemos algumas exposições de trabalhos e um pequeno debate.
Como se trata de uma turma de Direito Penal III, oportunidade em que estudamos os crimes contra a vida, resolvi que daríamos ênfase à Bioética. Afinal, o que menos me importa é estudar a lei — coisa que, para ser secamente honesto, qualquer um minimamente iniciado na disciplina pode fazer. A questão mais relevante é fazer os alunos refletirem sobre o que há acima, abaixo e para os lados da lei. Por isso, após estudarmos os crimes em si, abri espaço para outros elementos.
Começamos assistindo ao maravilhoso filme Mar adentro (Espanha, dir. Alejandro Amenábar, 2004), o qual reconstroi a história verídica de Ramón Sampedro (magnificamente interpretado por Javier Bardem e cuja imagem real você vê ao lado, na capa do livro que escreveu), que em sua juventude sofreu um acidente, tendo ficado tetraplégico. Apesar de contar com todo o apoio e amor de sua família, Sampedro foi dominado por uma infelicidade absoluta e se tornou obsessivo com a ideia de morrer, para se livrar de seus infortúnios. Foram quase duas décadas de apego a esse pensamento, chegando ao ponto de propor uma ação judicial pedindo o direito de morrer, o que lhe foi negado. O jeito, então, foi apelar para o suicídio assistido. Gravou a própria morte, com um protesto por ser forçado, pelo Estado, a agir clandestinamente, como um criminoso, já que o seu direito à vida fora transformado numa obrigação de viver.
Após dividir a turma em equipes, pedi que estudassem o tema, em seus aspectos filosóficos, sociais, religiosos, estatísticos, etc. A intenção era que cada equipe fizesse uma curta apresentação e depois debateríamos. Levamos dois dias para concluir a empreitada e saí dela bastante satisfeito.
Tivemos a oportunidade de conhecer vários aspectos importantes: desde a evolução da concepção de eutanásia na História, passando pela comparação dos diferentes ordenamentos jurídicos mundo afora, até chegarmos a números que mostram efeitos estarrecedores da eutanásia e do suicídio assistido, nos países que os adotam, tais como:
  • idosos têm medo de ser mortos pelos familiares e migram de países como Holanda e Suíça para a Alemanha, onde se sentem mais seguros, porque as leis são proibitivas;
  • surgem propostas para que sejam distribuídas pílulas letais a idosos que tenham perdido o gosto pela vida, mesmo que não sofram de nenhuma doença que lhes comprometa as condições de viver dignamente;
  • já existe um turismo suicida na Suíça, para onde vão pessoas que desejam morrer e, naquele país, protegidas pelas leis mais liberais da Europa (mais liberais até que as holandesas), contam com o apoio de uma ONG para consumar seus planos.
Observamos que a cada vez maior insistência em se debater o assunto pode estar relacionada ao envelhecimento da população, que é uma tendência mundial. Com isso, aumenta o número de pessoas consideradas improdutivas, pressionando os sistemas previdenciários até níveis intoleráveis. Eliminá-las seria uma solução eficiente.
Finalmente, no Brasil, temos a eutanásia como prática consagrada e corriqueira, praticada a todo momento nos hospitais, sobretudo nos públicos, onde a carência de leitos, medicamentos e equipamentos pode despertar um nefasto utilitarismo nos profissionais: matar os pacientes considerados casos perdidos, para recambiar a infraestrutura para um dos muitos que aguardam nas filas. Ou até mesmo para traficar órgãos. O cenário é mais assustador do que qualquer filme poderia sugerir.
Não faltaram vários casos para exemplificar os pontos de vista, tanto de pessoas que morreram quanto de outras que, reputadas em estado irreversível, acabaram voltando. E referências a Dworkin e Alexy, autores sobre lembrados nesse tema. Não faltou também a controvérsia interminável: não se chega a um consenso sobre isso, de modo algum.
Acima de tudo, é gratificante ver alunos dizendo terem mudado de opinião durante a execução do trabalho, ou seja, graças ao que leram e discutiram, finalmente eles alcançaram uma dimensão mais clara do assunto e firmaram uma opinião mais consciente, seja contrária ou a favor do direito de morrer. Com isso, fica-me a sensação de ter construído algo real na formação dessa turma, ou ao menos de algumas pessoas. Algo em suas mentes, em suas almas. É para isso que deveria destinar-se toda e qualquer instituição de ensino, não?
Hoje durmo satisfeito, agradecendo aos meus alunos pela atenção dada à atividade. Espero que tenham aproveitado.

5 comentários:

Carlos Barretto  disse...

Existe um dado muito interessante nesta questão, Yúdice, que acaba por prejudicar em 100% das vezes seu pleno entendimento prático.
Assisti a um documentário muitíssimo interessante sobre o assunto. Nele, ficou uma idéia forte sobre uma coisinha que pode fazer toda a diferença: medicina de cuidados paliativos.
Nos países onde este tipo de medicina ainda não é plenamente desenvolvida (existem muitos), a sociedade em geral é contrária a qualquer tipo de morte assistida.
Já nos países onde toda uma estrutura pública e privada está montada para fornecer conforto e alívio a, muitas vezes, terríveis sintomas de doenças terminais, a tendência é de aprovação a alguma forma de morte digna. Não necessariamente a Eutanásia. Mas a de fornecer o DIREITO (legal) de o paciente recusar os caríssimos turnos, equipamentos, tubos e cânulas de UTI.

Abs

Frederico Guerreiro disse...

Uma boa sugestão seria o filme "De quem é a vida, afinal?", de 1981.
Baseado em fatos reais, conta a história de um homem (magnificamente interpretado por Richard Dreyfuss) que sofre um acidente que o deixa tetraplégico. O homem, então, começa a questionar se vale mesmo a pena continuar vivo daquela forma, e entra com uma ação judicial para ter o direito de ver desligados os aparelhos que o mantém vivo. Se não me engano, ganou Oscar, é só procurar na internet para saber.
Para quem deseja aprofundar os argumentos sobre o direito de dispor da própria vida, vale a pena conferir.

Anônimo disse...

É professor, eu acredito que foi o melhor trabalho do curso que já foi realizado com a minha turma. Se o senhor fizesse uma espécie de tribuna, como foi feito em sociologia do Direito, aí sim veria a competitividade entre os alunos, a discussão foi tão incisiva, imagine o exercício de um tribunal, um fala o outro contesta, réplicas, tréplicas, o "negócio" foi bastante intenso. Fica uma sugestão para as suas próximas turmas.

Anônimo disse...

Ahhhh, o senhor já leu "Salvando meu filho"? Esse livro conta na ótica do pai, tudo que sentiu e aconteceu com o filho tetraplégico, ele quer convencer a esposa e os médicos sobre a eutanásia, mas o rapaz com o movimento de um dedo pede pra viver. Fatos reais, muito bom, eu tenho se o senhor se interessar, li muito antes de entrar no curso.

Yúdice Andrade disse...

A medicina de cuidados paliativos que mencionas, Bar, foi um dos temas aventados durante as apresentações dos alunos. Fiquei impressionado de saber que nos países em que a eutanásia ou o suicídio assistido são permitidos essa área médica pouco se desenvolve, citando-se o exemplo concreto da Suíça.

Não tinha ouvido falar do filme, Fred. Registrado, para poder conferir. Com o detalhe de que a obra é de 1981, portanto quando a Medicina estava muito menos evoluída. Considero valioso examinar o pensamento daquela época.

Essa idéia sempre existe, Marcela, mas diante de tua manifestação entusiasmada ela pode se tornar algo concreto ainda neste semestre. Eu realmente adoro quando a tua turma engata uma discussão. Sempre surgem opiniões bem relevantes - que podem ser incrementadas com o temperinho de uma saudável competição.
Neste momento não tenho tempo para leituras de lazer, mas me interessei pelo livro. Numa folga, posso aceitar a oferta. Abraço.