quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Ensaio sobre a coleira

Com muita saudade dos meus cães, que — é terrível admitir — neste momento estão mais felizes na casa da avó do que com seus donos, incapazes de lhes dar atenção desde que o bebê nasceu, descolei no maravilhoso Blônicas esta crônica, excelente desde o título:

Ensaio sobre a coleiraDe Max (cão de Henrique Szklo).Mitos e verdades sobre o cinofilismo dialético.
Existe uma certa resistência, diria até uma má vontade mal-disfarçada, de vocês, humanos, em aceitar e compreender os preceitos básicos que contemplam o cinofilismo dialético, um estudo tão complexo e profundo da alma canina. Alguns de vocês, a maioria talvez, nem acreditam que nós, cães, tenhamos alma. Nos enxergam como seres praticamente celerados, ocos, insensíveis, colocados no mundo por Deus apenas para latir, abanar o rabo, farejar comida e fazer coco. Pelas babas do Pateta! Nada poderia ser mais injusto, para não dizer ultrajante.
O cinofilismo dialético é uma linha filosófica de bases muito sólidas que discute, de maneira ampla, reflexiva e transparente, alguns dos mais importantes e indispensáveis elementos da vida sócio-cultural dos cães. Um de seus principais temas é o repúdio insofismável à prática repulsiva de tentar manter nossas raças puras. Nada mais repugnante do que repetir o erro que vocês mesmo cometeram há alguns anos, estipulando regras de aparência e comportamento que caracterizam o que é “ser” de uma raça ou não, criando a categoria inaceitável de cães de segunda classe. Eu mesmo fui mais uma das tantas vítimas que esta prática execrável provoca em nossa psique. Não tenho nenhum orgulho em afirmar, ao contrário, mas sou filho de minha própria irmã, o que me causa naturalmente um tremendo desconforto. É claro que o meu pai não é totalmente culpado deste crime hediondo, já que foi colocado nesta situação e ninguém lhe perguntou se estava disposto ou não. Porém, não o eximo totalmente de culpa. Se ele não quisesse, não teria consumado o fato e hoje eu não existiria, mas ele poderia se sentir um cachorro mais digno. Fazer sexo com a própria filha, Dom Pixote me livre! De qualquer forma, milhões de cães em todo o mundo são vítimas deste que é o maior crime contra a cachorridade. E isso tem de acabar.
Não bastasse isso, ainda existem os concursos, que são verdadeiros festivais de preconceito. Quem pode ou não pode ser considerado de uma raça. Quem é o mais digno para ser legitimado como “puro”. Ridículo. E os idiotas que se propõe a participar deste circo ainda se sentem orgulhosos e caminham com uma empáfia de dar nojo. Para nós, seguidores do cinofilismo dialético, pedigree é uma afronta. Se tivéssemos mãos, rasgaríamos o nosso sem hesitação.
O que vocês não se dão conta, ou fingem não dar, é que isso prejudica sobremaneira a nossa vida sexual. Mutley explica! Segundo ele, todos os nossos problemas têm fundo sexual. Ainda mais nos dias de hoje. Vocês sabem que cães que vivem com humanos já tem uma certa dificuldade em encontrar parceiras. Não costumam sair muito e quando saem, estão sempre presos à coleiras, enforcadores e afins. O sexo livre foi praticamente abolido de nossas vidas e somos obrigados a manter relações sexuais com quem nossos donos escolhem. E ainda por cima, sob seus olhares curiosos. O mais difícil não é fazer sexo na frente de várias pessoas, mas sim conseguir manter a ereção ouvindo seus comentários sarcásticos e nada lisonjeiros sobre nosso desempenho.
Outra questão premente estudada pelo cinofilismo dialético é a necessidade inadiável de se criar novos sabores para a ração que nos é oferecida. Vocês, enquanto se locupletam com centenas de pratos, doces, salgados, milhares, milhões de receitas, oferecem aos seus ditos melhores amigos, um alimento seco, insosso e sem nenhum apelo visual ou olfativo. Vocês fazem uma idéia do que é comer todo santo dia a mesma coisa? Café da manhã, almoço e janta, a vida inteira o mesmo indigesta e desagradável alimento? Não, não devem fazer. Mas eu lhes afirmo: é insuportável. De qualquer maneira é fácil de perceber que o que falta é boa vontade da parte dos humanos. Nós podemos até compreender que a vida moderna exige que os alimentos de cães sejam práticos e que a nossa necessidade de nutrientes esteja plenamente satisfeita com as rações atuais. Ei, não precisa cozinhar para nós! Nós entendemos. Só o que pedimos é o desenvolvimento de rações com sabores, cheiros e consistências diferentes. Por que não uma ração com sabor pizza de calabresa? Ou de nhoque com porpeta? Lasanha seria espetacular. Sushi, frango assado com farofa. Ou ainda rações com aparência de um bolo de mil-folhas com profiteroles ou uma Lagosta ao Termidor. Por Snoopy, será que isso é pedir muito?
O cinofilismo dialético também trata de outra questão de suma importância para todos nós, membros da raça canina: o uso inadvertido, obrigatório e não-autorizado de roupas. Nós não queremos nem temos a menor vontade de nos vestir, principalmente aquelas roupinhas em que se lê SEGURANÇA. Pelo amor de Lassie, será que vocês não percebem que não fomos feitos para usar nenhum tipo de vestimenta? Já não nos basta a vergonha de ter de caminhar ao lado de seres bípedes com roupas, em geral de péssimo gosto? Olha, sou um intelectu-au, tenho amestrado, mas às vezes não consigo me controlar. Me pego em ataques de fúria e só consigo me acalmar com minha bolinha de borracha.
O cinofilismo dialético também dá rápidas pinceladas em questões menos importantes, mas não menos críticas, como a incompreensível proibição de cães em certos locais, a inaceitável obrigatoriedade de banho e tosa, a insistência dos humanos em jogarem coisas fora (nós corremos, buscamos e vocês pegam de nossa boca e jogam de novo), solicitações estúpidas como nos obrigar a fingir de morto, as vacinas dolorosas, o uso de enforcadores, as broncas que levamos quando cheiramos as partes íntimas das visitas, etc, etc, etc.
Após anos de estudos e desenvolvimento do cinofilismo dialético, a conclusão a que se chega é que se o ser humano considera que o cão é seu melhor amigo e nos trata de forma tão displicente, discriminatória e indigna, imagine quem ele considera inimigo. Bom, nem precisamos imaginar, não é verdade? Basta abrir os jornais todos os dias.

Max é cão de guarda de Henrique Szklo, que é cronista do Blônicas.

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