sexta-feira, 31 de outubro de 2008

"Lei Maria da Penha" para homens

Como não poderia deixar de ser, ganhou enorme repercussão a notícia do primeiro caso de aplicação da Lei n. 11.340, de 2006 — "Lei Maria da Penha" em favor de um homem, que vem sendo molestado pela ex-mulher, a qual não aceita o término do relacionamento.
Fui questionado sobre isso ontem, em aula, mas não tinha conhecimento do caso. Fiquei preocupado com o uso de analogia em Direito Penal, o que é absolutamente vedado, mas agora que me inteirei do assunto constato que a medida judicial não está apenas correta: ela é também digna de elogios. Afinal, não se trata de criminalizar sem amparo legal, ou seja, em desobediência ao princípio da legalidade. A decisão do juiz Mário Roberto Kono de Oliveira, do Juizado Especial Criminal Unificado de Cuiabá (MT), foi no sentido de conceder medidas protetivas de urgência. Para isso, sem dúvida, ele pode até não se respaldar em lei expressa, mas se respalda no Direito. Isso sim é um bom juiz: não se esconde atrás de tecnicalidades para não decidir.
Leia e inédita e valorosa (abstraindo os graves erros de português) decisão:

Decisão interlocutória própria padronizável proferida fora de audiência. Autos de 1074/2008
Vistos, etc. Trata-se de pedido de medidas protetivas de urgência formulada por CELSO BORDEGATTO, contra MÁRCIA CRISTINA FERREIRA DIAS, em autos de crime de ameaça, onde o requerente figura como vítima e a requerida como autora do fato.
O pedido tem por fundamento fático, as varias agressões físicas, psicológicas e financeiras perpetradas pela autora dos fatos e sofridas pela vítima e, para tanto instrui o pedido com vários documentos como: registro de ocorrência, pedido de exame de corpo de delito, nota fiscal de conserto de veículo avariado pela vítima, e inúmeros e-mails difamatórios e intimidatórios enviados pela autora dos fatos à vítima. Por fundamento de direito requer a aplicação da Lei de nº 11.340, denominada “Lei Maria da Penha”, por analogia, já que inexiste lei similar a ser aplicada quando o homem é vítima de violência doméstica. Resumidamente, é o relatório.
DECIDO: A inovadora Lei 11.340 veio por uma necessidade premente e incontestável que consiste em trazer uma segurança à mulher vítima de violência doméstica e familiar, já que por séculos era subjugada pelo homem que, devido a sua maior compleição física e cultura machista, compelia a “fêmea” a seus caprichos, à sua vilania e tirania.
Houve por bem a lei, atendendo a súplica mundial, consignada em tratados internacionais e firmados pelo Brasil, trazer um pouco de igualdade e proteção à mulher, sob o manto da Justiça. Esta lei que já mostrou o seu valor e sua eficácia, trouxeram inovações que visam assegurar a proteção da mulher, criando normas impeditivas aos agressores de manterem a vítima sob seu julgo enquanto a morosa justiça não prolatasse a decisão final, confirmada pelo seu transito em julgado. Entre elas a proteção à vida, a incolumidade física, ao patrimônio, etc.
Embora em número consideravelmente menor, existem casos em que o homem é quem vem a ser vítima da mulher tomada por sentimentos de posse e de fúria que levam a todos os tipos de violência, diga-se: física, psicológica, moral e financeira. No entanto, como bem destacado pelo douto causídico, para estes casos não existe previsão legal de prevenção à violência, pelo que requer a aplicação da lei em comento por analogia. Tal aplicação é possível?
A resposta me parece positiva. Vejamos: É certo que não podemos aplicar a lei penal por analogia quando se trata de norma incriminadora, porquanto fere o princípio da reserva legal, firmemente encabeçando os artigos de nosso Código Penal: “Art. 1º. Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal.”
Se não podemos aplicar a analogia in malam partem, não quer dizer que não podemos aplicá-la in bonam partem, ou seja, em favor do réu quando não se trata de norma incriminadora, como prega a boa doutrina: “Entre nós, são favoráveis ao emprego da analogia in bonam partem: José Frederico Marques, Magalhães Noronha, Aníbal Bruno, Basileu Garcia, Costa e Silva, Oscar Stevenson e Narcélio de Queiróz” (DAMÁSIO DE JESUS – Direito Penal - Parte Geral – 10ª Ed. pag. 48) Ora, se podemos aplicar a analogia para favorecer o réu, é óbvio que tal aplicação é perfeitamente válida quando o favorecido é a própria vítima de um crime. Por algumas vezes me deparei com casos em que o homem era vítima do descontrole emocional de uma mulher que não media esforços em praticar todo o tipo de agressão possível contra o homem. Já fui obrigado a decretar a custódia preventiva de mulheres “à beira de um ataque de nervos”, que chegaram a tentar contra a vida de seu ex-consorte, por pura e simplesmente não concordar com o fim de um relacionamento amoroso.
Não é vergonha nenhuma o homem se socorrer ao Pode Judiciário para fazer cessar as agressões da qual vem sendo vítima. Também não é ato de covardia. È sim, ato de sensatez, já que não procura o homem/vítima se utilizar de atos também violentos como demonstração de força ou de vingança. E compete à Justiça fazer o seu papel de envidar todos os esforços em busca de uma solução de conflitos, em busca de uma paz social.
No presente caso, há elementos probantes mais do que suficientes para demonstrar a necessidade de se deferir a medidas protetivas de urgência requeridas, pelo que defiro o pedido e determino à autora do fato o seguinte: 1. que se abstenha de se aproximar da vítima, a uma distância inferior a 500 metros, incluindo sua moradia e local de trabalho; 2. que se abstenha de manter qualquer contato com a vítima, seja por telefonema, e-mail, ou qualquer outro meio direto ou indireto. Expeça-se o competente mandado e consigne-se no mesmo a advertência de que o descumprimento desta decisão poderá importar em crime de desobediência e até em prisão. I.C.

11 comentários:

Frederico Guerreiro disse...

Clap, clap, clap... receba minha onomatopéia do aplauso. Só faltou um detalhezinho na sentença: "em todo caso, abstenha-se a ré de agredir o marido, sob pena de ..."

Antonio Carlos Monteiro disse...

Decisao singular. Que merece ovações!

A analogia, como "princípios gerais do Direito", é de natureza precípua (ou melhor, deveria ser) para nosso anacrônico ordenamento penal. Enrijecido, sabe lá o porquê, numa fortaleza de tipificação arcaica e obsoleta aos anseios de hoje.

Abs, Professor.

Yúdice Andrade disse...

Vai ver que o juiz sabe que essa parte final é inútil, Fred. Os "psicopatas amorosos" são incorrigíveis.

Caro Antônio, sempre fico muito feliz de ver um magistrado decidir sob fundamentação principiológica. É uma esperança de um Direito melhor.

Anônimo disse...

Olá...
meu nome é Glaupe Cristina Oliveira Cabral
eu era afilhada da senhora em questão!
e eu conheço esse homem...
ele não é tão amavel e vitima assim, mas ela é descontrolada!
já passou o carro em cima da moto de meu pai ex-marido dela.
Mas ela teve ajuda do Sr. Celso Bodergatto

Yúdice Andrade disse...

Olá, Glaupe. Sinto-me honrado de ter merecido a atenção de uma pessoa mais próxima dos fatos reais que, para nós, são apenas notícias de jornal (ou, no meu caso, algo mais, já que uso esses exemplos em minha atividade docente).
Gostaria de lembrar que, de minha parte, em momento algum houve qualquer menção a ser o cidadão beneficiado pela decisão um homem amável. Comemorei apenas a decisão, independentemente das partes envolvidas. Porque a decisão, em si, é de fato relevante para a cultura jurídica nacional.
Espero que, agora, a tua família esteja em paz. Um abraço.

Luis disse...

olá, sei que é um tópico antigo, mas me interesso muito sobre esse assunto, e como academico do curso de direito estou fazendo minha monografia sobre esse assunto, gostaria de saber se vc poderia me da algumas dicas de jurisprudencias e casos que poderia acompanhar, ja que nao é um assunto tao comentado. Obrigado!

email: luisfernando.barbosa@gmail.com

Yúdice Andrade disse...

Caro Luís Fernando, peço desculpas pela demora em responder. E lamento que o caso apresentado nesta postagem seja isolado. Pessoalmente, não conheço outros que pudesse indicar, para subsidiar a sua pesquisa.
A "Lei Maria da Penha" é relativamente recente e, sobretudo por conta da lerdeza do Judiciário, demora a que casos concretos cheguem ao Judiciário, e daí ao nosso conhecimento. Ainda mais quando se trata de um aspecto tão particular e incomum.
Boa sorte no trabalho.

luis disse...

É essa a dificuldade que estou encontrando, poucos casos devido a lentidão do judiciario. Mas mesmo assim agradeço a preucupação em responder.

Glaupe Cabral disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Valdecy Alves disse...

Leia artigo que escrevi sobre a Lei Maria da Penha. A partir de entrevista da própria Maria da Penha, em 31/01/2010, que defende a existência de uma lei para prender os que ameaçam. ATESTANDO ASSIM A INEFICÁCIA DA LEI QUE LEVA O SEU NOME. Após tanta violência e mortes já em 2010. Vitimando mulheres. MAS A LEI MARIA DA PENHA REALMENTE FRACASSOU? O QUE FAZER? QUAIS E COMO OS ATORES SOCIAIS DEVEM AGIR? Leia, divulgue e comente ARTIGO DO MEU BLOG, clicando em: www.valdecyalves.blogspot.com

Unknown disse...

Uma visão legal!