quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Linchamento: a lógica da guerra

Mais de um aluno me perguntou ontem sobre um linchamento ocorrido em Marituba, divulgado ontem pela grande imprensa. Em síntese, um homem de 32 anos, embriagado, aproveitou-se da madrugada para invadir uma residência onde dormiam duas adolescentes, de 15 e 13 anos. Queria sexo. Frustrado em seus intentos, acabou agarrado por populares, despido e amarrado a um poste, onde acabou seviciado sem a menor chance de defesa. O corpo ficou exposto até de manhã, quando finalmente a polícia chegou (eficiente, como sempre), com direito a plaquinha indicando o seu delito (escrito errado).
Penso que um linchamento equivale à guerra — numa dimensão muito menor, naturalmente. A guerra é a negação do Direito. Quando povos ou nações abdicam da racionalidade e das leis, passam a perseguir suas pretensões por meio da força bruta. A mesmíssima força bruta dos hominídeos que, na pré-história, venciam disputas de toda ordem com base no golpe mais eficiente. Sorte de quem descobriu primeiro o potencial de um osso como arma.
Não faz diferença se, desde a Guerra do Golfo de 1991, falamos em guerras tecnológicas, com um aparato científico sendo mais importante (em tese) do que o avanço das tropas (o que não foi verdade na Guerra do Iraque, quando os exércitos locais deram um baile nos americanos, durante anos). Haja a tecnologia que houver, uma guerra é sempre a exteriorização suprema da força como meio eficaz, embora não legítimo, para se obter uma pretensão, qualquer que seja.
O linchamento também é uma negação do Direito, com a diferença de que o alvo é uma ou algumas pessoas. O efeito é pontual, mas não diverge da mesma lógica de abdicar das leis, do bom senso, da humanidade para se chegar a um objetivo. A guerra e o linchamento são utilitaristas ao extremo: o fim é tido como tão valioso que os meios não importam. E como não se utilizam aparatos tecnológicos, o linchamento de hoje é materialmente semelhante aos de antigamente: brutalidade pura, tão somente.
O caso de Marituba não precisava ter o desfecho que teve. Arrisco-me a dizer que o crime da vítima — sim, ele é uma vítima, quer você concorde com isso ou não, porque é o sujeito passivo de um fato também previsto em lei como crime — teve um fator preponderante: a bebida. Sim, a droga mais consumida no país, lícita, com a qual todos são extraordinariamente lenientes. E por que afirmo que o invasor só fez a besteira que fez por estar embriagado e, por conseguinte, sem pensar com clareza no que fazia? Porque invadiu uma residência sozinho e desarmado, vindo a armar-se posteriormente, com uma faca que encontrou na casa das adolescentes, um fato circunstancial. Porque estava em minoria numérica, o que ele talvez soubesse, porque decerto não escolheu a casa a esmo. Porque estava fisicamente abatido pela bebida, tendo sido empurrado para fora da casa pelas duas meninas e mais dois garotos. Porque ao ver-se na rua só de cueca, invadiu de novo a casa para reaver sua bermuda, sem medir as consequências desse ato. Foi justamente por causa disso que acabou agarrado por vizinhos.
Penso, ainda, que o procedimento esperado de um estuprador seria que ele, ao abordar a primeira garota, já estivesse armado e procurasse imobilizar a outra vítima. Estando desarmado, impedir que as meninas gritassem ou fugissem seria essencial para ele. Contudo, nosso protagonista não fez nada disso. Segundo as próprias meninas, ele acordou a primeira mandando que se despisse. Ela recusou. Abordou a segunda, que também se recusou. Ele então exclamou que "uma das duas teria que ceder". Parecia que queria convencer uma delas, em vez de subjugá-las. Seja como for, está morto.
Trágico também é ver a irrestrita aprovação geral à barbárie. Revolta-me quando alguém diz coisas do tipo "Deus me perdoe, mas foi bem feito". Se você aprova linchamento, como se atreve a pedir a clemência divina? Aceite os ônus de sua opção. Deus não tem nada com isso.

2 comentários:

Gabriel Parente disse...

Se fingíssemos que a população brasileira fosse dotada de valores morais e éticos - pelo menos a sua maioria - deveríamos, então, nos assustar com tal fato. Mas não. Pelo que se vê, essa atitude é tragicamente rotineira, principalmente nas periferias e na região metropolitana da "grande" Belém. Se fores ao youtube, professor, e procurar algo como "bandido é espancado até a morte em belém", encontrarás um video de horror.
Engraçado que, algumas vezes, os populares capturam um joão ninguém o qual eles julgam ser assaltante; às vezes é um inocente, posteriormente linchado à toa. É triste. Não sei por que os populares não capturaram os nossos candidatos e lincharam-os, nos famigerados períodos eleitorais.
Enfim, a sociedade é carente. E não há deus (assim memso, sem a santificação da letra maiúscula) que perdoe isso; nem mesmo Hades. E se há um Deus, ele deixou seus filhos(?) de lado e se divertiu com o Lindemberg e a polícia.

Yúdice Andrade disse...

Já me falaram desse vídeo várias vezes, Gabriel. Sei do que se trata e por isso nunca me dispus a assistir.
O que mencionas é crucial para a rejeição à idéia do linchamento: prática irracional que é, não distingue culpados de inocentes, gerando um horror que ultrapassa qualquer possibilidade de compreensão e tolerância. Pior para aqueles que, como eu, execram o linchamento mesmo para o mais culpado dos criminosos. Afinal, o que devemos fazer com nossos milênios de evolução? Jogar fora, simplesmente?
Abraço.