terça-feira, 7 de outubro de 2008

Reincidência

Os arts. 63 e 64 do Código Penal disciplinam o instituto da reincidência, definida como o cometimento de um novo delito após o agente já se ter sido condenado por outro, em sentença transitada em julgado. A reincidência é prevista como agravante genérica da pena (a mais grave de todas) e provoca uma série de consequências danosas sobre o indivíduo, reduzindo o seu acesso aos benefícios legais e até mesmo os inviabilizando, nos casos mais graves. Por isso mesmo, a reincidência é adorada por quem vê no Direito Penal um instrumento especificamente segregador. Graças a ela, estariam justificadas as prisões cautelares, as condenações exemplares, o máximo encarceramento.
Contudo, quando analisamos a reincidência em sua real natureza, não temos como negar que ela viola princípios elementares do Direito Penal, nomeadamente o da lesividade e o da individualização da pena.
A reincidência viola o princípio da lesividade porque a pena do réu será definida não somente pelo delito efetivamente cometido (o que é o correto — "Direito Penal de ato"), mas por seu passado. Ou seja, puniremos uma condição pessoal do criminoso, e não estritamente os fatos praticados ("Direito Penal de autor"). Cresce o número de autores apontando essa situação e se inclinando contrariamente à reincidência.
Ela viola também o princípio da individualização da pena porque estabelece, aprioristicamente, vedações de acesso a previsões da lei. Não haveria qualquer problema em se vedar benefícios com base no delito em si; o problema é fazê-lo com base no currículo do agente.
Para a turma da lei e ordem, claro, esta é uma discussão estéril. Se o sujeito delinquiu mais de uma vez, é porque não presta, é vagabundo, safado, merece ir pro saco e blá blá blá. Contudo, para quem deseja ver um Direito Penal corretamente pensado e aplicado, deve-se conversar a respeito, sim. Não para que se chegue à conclusão de que a lei precisa ser boazinha com bandido — o que, pela enésima vez, insisto não ser a nossa intenção. Mas para que se construam instrumentos sérios, que possam ser aplicados sem dar muita margem a recursos e incidentes processuais meramente procrastinatórios, nos quais a defesa se queixa, justamente, desse tipo de mazela.
Um Direito Penal seriamente construído é útil, sobretudo, quando se deseja punir os criminosos com mais rigor. Porque nesse caso o velho apotegma dura lex sed lex não está mais emplacando como antes.
Motivo desta postagem: o Supremo Tribunal Federal está prestes a julgar dois recursos extraordinários nos quais se discute se a reincidência está ou não de acordo com a Constituição de 1988. E a matéria está sendo discutida com base na lei da repercussão geral, ou seja, a decisão que for proferida poderá bloquear todos os demais recursos versando sobre o mesmo tema. E poderá mudar um dos aspectos mais fortes do Direito Penal como nós o conhecemos. Não é pouca coisa.

2 comentários:

Frederico Guerreiro disse...

Sou a favor da perda de certos benefícios em caso de reincidência. Presumo que foi por isso que o digníssimo delegado resolveu não instaurar inquérito no caso daquele corretor estelionatário. Ele iria colocar o ladrão na cadeia, sem dúvida. Mas não deu certo essa tática do delegado, porque o meliante já é condenado e foi, recentemente, denunciado por outro crime de estelionato (com base em inquérito presidido por outra autoridade policial), instrução processual a ser realizada em janeiro próximo. Mas, como sou vítima desse corretor vigarista, penso mesmo é na cadeira elétrica.
Resolvi deixar ele de lado e venho obtendo razoável sucesso em executar os contratos e ajuizar as reintegrações de posse dos imóveis que vendeu criminosamente. Só queria que ele pagasse pelo crime que cometeu contra o patrimônio de meu pai.
Não nos esqueçamos de que, cinco anos depois de cumprida a pena, fica tudo limpinho, certo, mestre? Corrija-me se estiver meio esquecido.
Breve escreverei sobre como ficou a situação do corretor estelionatário.

Yúdice Andrade disse...

Fiquei muito impressionado a primeira vez que pensei na ilegitimidade da reincidência, Fred. Ela me parecia algo tão óbvio e oportuno. Mas é por isso mesmo que sempre insisto que devemos rever os nossos conceitos, além dos do Direito Penal.
Não é um assunto fácil e por isso mesmo reclama reflexão e debate.
Aguardarei informações sobre o caso do estelionatário. Sempre me pergunto que rumo isso tomou.
Fico feliz de saber que as coisas estão caminhando bem, como deve ser. Abraços.