Muito já me perguntaram porque não publiquei nada acerca do caso dos irmãos Novelino. Sempre respondo que o caso está em aberto e precisamos evitar que algo tão grave quanto o Direito Penal seja tratado como o futebol, área em que todo mundo se acha técnico e por isso emite opiniões cheias de verdade absoluta. Já me manifestara, contudo, no blog O Intimorato, do amigo Fred Guerreiro, inclusive trocando ideias com o Prof. André Coelho, que enriqueceu a discussão com seus conhecimentos de Filosofia.
Agora que se confirma a minha suspeita — o Ministério Público entendeu tratar-se de homicídio qualificado —, penso ser o momento de externar minha opinião, estritamente com o propósito de contribuir para o debate.
Sabemos que a polícia e o advogado Antônio Neto, representante dos familiares das vítimas, sustentam ter havido um latrocínio, mas esse pensamento não é comungado por quem mais interessa, o titular da ação penal.
Anunciado o delito, meu primeiro pensamento foi o de duplo homicídio qualificado pelo motivo torpe, pelo meio cruel (asfixia) e mediante dissimulação (CP, art. 121, § 2º, I, III e IV). Some-se a isso a ocultação dos corpos. Num primeiro momento, entendi que o roubo era apenas um artifício para escamotear a real intenção dos criminosos (especificamente matar), desviando o rumo das investigações.
Após refletir com mais vagar — e inclusive devido aos estudos para elaboração de minhas aulas —, ponderei que, qualquer que seja a finalidade última dos agentes, se eles efetivamente mataram e efetivamente roubaram, haveria aí o tipo de latrocínio, realmente.
A meu ver, a interpretação do caso está sendo prejudicada pela valoração dada aos objetivos finais dos agentes. Se a real intenção era matar, então o delito é de homicídio. Lamento mas, nesses termos, a conclusão é bastante simplória.
Penso que o caso se resolve pela que a doutrina penal chama de dolo de consequências necessárias. Com os naturais prejuízos que toda síntese provoca, a ideia pode ser resumida assim: quando alguém delibera cometer um delito, naturalmente o que surge em seu intelecto é o crime em si, ou seja, o resultado pretendido pelo agente. O agente delibera matar, roubar, estuprar — e não adquirir uma arma para roubar, escolher um local para roubar ou ficar de tocaia para abordar uma vítima sexual. Somente depois de definir o objetivo é que o agente começa a selecionar mentalmente os meios de que se utilizará, bem como os modos de atuação, escolha de armas, local, tempo, ocasião, etc. O passo seguinte é a obtenção dos insumos escolhidos e, por fim, a execução.
Durante esse procedimento, o agente pode perceber que, para ultimar o delito desejado, ele precisará realizar outras ações que, isoladamente consideradas, são igualmente criminosas. São os efeitos colaterais representados (compreendidos) como necessários. Ao concluir que, para consumar o crime do jeito que pensou, será preciso cometer essas outras ações que, embora não sejam seu objetivo real, mostram-se necessárias em seu entendimento, o agente passa a querer o que antes não queria, ou seja, ele passa a ter dolo também em relação a esses elementos, que ampliam a sua ideação original.
Imagine a situação de um homem que decida invadir uma residência para estuprar a moradora. Após investigar o local, chega à conclusão que o melhor a fazer é usar o carro da própria vítima para fugir com maior facilidade. Isso pode não ter passado pela sua mente no planejamento inicial; pode ser uma ideia que surja durante a execução do delito. Mas se ele estuprar a vítima e fugir em seu automóvel, é óbvio que teve dolo de estupro e dolo de roubo, devendo responder pelos dois delitos.
Aplicando o mesmo raciocínio ao caso Novelino, teríamos o seguinte: para matar, não é necessário todo o mise-en-scéne engendrado pelos criminosos — por sinal, um planejamento imenso com execução canhestra, levando à elucidação do caso em tempo recorde. Mas se eles deliberaram que o crime seria praticado do jeito que foi, significa que consideraram como efeitos colaterais necessários a simulação de assalto, o roubo de documentos e do carro, etc. Logo, tiveram dolo para cada um desses elementos. Dolo direto de homicídio (a verdadeira e última intenção) e dolo de consequências necessárias quanto ao ataque patrimonial. Agora basta aplicar o art. 157, § 3º, do Código Penal: a fusão entre os dolos de homicídio e de roubo produz, logicamente, o tipo de latrocínio. É isso que defendo.
Aos estudiosos da matéria, recomendo a leitura de Eugenio Raúl Zaffaroni.
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