sábado, 30 de junho de 2007

Na sacada do sétimo andar

— Eu moro num edifício mal-assombrado!


Essa foi a revelação feita por meu amigo após me caçar por três dias, num desassossego tal que me fez temer por sua sanidade mental. Se bem que, vendo-o sorver a terceira tulipa de chopp me apresentando essa como justificativa para precisar tanto de mim, temi por sua sanidade mental. Fiquei agastado o suficiente para ele perceber e assumir ares defensivos:


— Não acredita em mim?! Pois eu posso provar!


E se pôs a me contar sua história, com uma quantidade impressionante de detalhes. Todo chato conta histórias com riqueza de detalhes. Tentarei resumir ao máximo.

Um dia, sem mais nem menos, o elevador do prédio começou a parar no sétimo andar. Parava em todas as subidas e em todas as descidas, sem erro. E nunca entrava ou saía ninguém. Pudera, há tempos não morava ninguém no 7. A família italiana voltara para a Itália e a octogenária que morava sozinha no apartamento ao lado tomara, voluntariamente, o rumo da outra vida no último janeiro. Quem já esperou elevador numa ocasião de pressa sabe do que falo. Imagine todo dia. Pressionado pelos moradores, o síndico acionou a assistência técnica.


Tudo examinado, nenhum defeito encontrado no equipamento, seja no vagão, seja nas instalações elétricas, placas, circuitos, etc. Tudo normal. Mas assim que os técnicos viraram as costas, lá estava o carro parado no 7. A assistência foi chamada novamente. Durante horas, testaram, observaram, subiram e desceram. Ao final, bateram o martelo: de fato, não havia uma só vez que o elevador não estacionasse no sétimo piso, seja subindo, seja descendo. Mesmo assim, não havia defeito. Acabrunhados, os homens se comprometeram a consultar o fabricante e fazer todo o possível para encontrar uma solução em alguns dias. Sem alternativa, os condôminos concordaram e voltaram, enfarados, à rotina de perder tempo.


E assim foi até que uma jovem, tão logo sentiu a imobilização do elevador no sétimo, berrou um palavrão e chutou a porta externa, que se abriu um pouco, revelando um pedaço do corredor e, nele, de pé, enfiada no vestido com estampa de flores miúdas de sempre, estava a velhinha que optara por novas vizinhanças. A garota congelou. Mas tudo fora tão rápido que ela mesma concluiu não ter visto o que pensara ter visto. Por isso, animou-se a empurrar a porta no último instante antes que se fechasse de vez. Evidentemente, não haveria ninguém lá.


Mas havia. A velhinha apareceu de corpo inteiro. Não satisfeita, o rosto crispado, abriu a boca como se quisesse falar e ergueu a mão na direção da garota que, em pânico, puxou a porta com força e rezou, de um jeito jamais feito antes. Queria sair dali. Em dois minutos, chegava ao apartamento. E em mais dez, o edifício inteiro sabia do ocorrido.


Entre a incredulidade, o deboche e a mistificação, houve peregrinação ao sétimo andar. Contudo, na medida em que ninguém viu nada, o desfecho foi o previsível. Ainda mais porque a denunciante era uma empregada doméstica e, naquela comunidade, isso pesou para suprimir-lhe a credibilidade. Ofendida, ela quis defender sua honra, mas foi só o patrão mencionar algo acerca de “demissão” e ela deixou de acreditar em fantasmas. Exceto pelas brincadeiras das crianças e tolices dos adultos, o episódio logo caiu no esquecimento. Até porque, coincidência ou não, a partir daquele dia o elevador não mais parou no 7. A vida voltou ao normal e todos, principalmente a assistência técnica, ficaram satisfeitos.


Nesse momento, entra em cena o meu amigo. Morador novo, só avistava seus vizinhos. Aficionado por cerveja e festeiro, certa madrugada chegou tropeçando nas próprias pernas e, sem perceber, ao invés do 8, apertou o 7. Acabou no corredor errado, mas não percebeu. Tentou entrar no que pensava ser o 801, mas se atrapalhou com as chaves, até porque a luz não acendeu. A lâmpada queimara desde que o andar ficara vazio. Enquanto tentava vencer o álcool e a escuridão, sentiu um hálito gelado. Virou a cabeça um milímetro para o lado e se deparou com uma idosa, que parecia querer dizer-lhe algo. Solícito, pôs-se de frente para ela, a fim de atendê-la melhor, mas nesse momento percebeu que de sua boca não saía som. Seu semblante, mesmo normal no que tange à humanidade, era também terrível. Meu amigo teve medo. Um horror inédito. Quando deu por si, estava caído no chão e duas horas atrasado para o trabalho.


Consciente do porre da véspera, meu amigo mergulhou em dúvida feroz: aquelas lembranças confusas, indistintas, eram reais ou apenas consequências das nove saideiras? Como quem não quer nada, bateu um papo com o porteiro sobre a vida no condomínio. Ficou sabendo da velhinha que, deprimida pela solidão, atirara-se da sacada de seu apartamento, o 701. Batera na laje da garagem superior e prosseguira sua queda até a rampa da garagem inferior, escorrendo até embaixo. Foi parar aos pés do servente que, atônito, descobriu que seus ossos estavam esmigalhados. Para meu amigo, o enigma estava solucionado. Não havia como ignorar o vestido de flores miúdas.

Por realidade ou autossugestão, meu amigo não mais teve sossego. Quando o elevador parava no sétimo, ele sentia calafrios e taquicardia. Parecia-lhe ser observado. Em casa, não andava mais descalço, pois achava que mãos gélidas faziam cócegas nas suas plantas, deslizando sob o assoalho. Passou a ter medo de escuro e de estar só — o que era um problema, pois morava sozinho. Ao se ver acuado, restavam-lhe os amigos. Desafortunadamente, o escolhido fui eu.

Aprendi com meu pai que doido a gente não contraria, por isso escutei com paciência e, tendo sido provada a tese de importunação fantasmagórica, coube-me agir como se concordasse. Perguntei-lhe o que pretendia.


— A velha está lá porque não encontrou a paz — anunciou-me, em tom profético.


— Nem podia — meti corda. — Ela se suicidou.


— Pois então! — Ele se rejubilou com minha suposta reciprocidade. — Ela sequer foi enterrada, porque a Igreja não permite que suicidas tenham sepultura em solo consagrado. Foi cremada.

— Que me conste — ironizei —, esses cemitérios particulares de hoje são consagrados somente ao Deus Grana.


Ele me olhou feio, os olhinhos apertados de reprovação. Mas superior que era, começou a me explicar sobre rituais em intenção das almas atormentadas. Foi do catolicismo ao hinduísmo em mais dois chopps. Quando terminou o de número 5 da noite, fui forçado a prometer ajudá-lo, senão ele pediria a saideira. Ele queria sair dali com a cerimônia toda esquematizada, porém admitiu que não definira, ainda, que técnica seria cabível na conjuntura. O jeito foi prometer visitá-lo na noite seguinte, para planejar o evento religioso.


À tarde, eu já estava profundamente irritado. Aproximava-se o compromisso mais idiota de toda a minha vida. Mas como eu nunca descumpria promessas feitas a um amigo, pus-me a caminho. O porteiro me conhecia e me admitiu sem interfonar. Entrei no elevador e apertei o 8. Minha atenção toda se fixou na belíssima loura que viera nele do subsolo. Sorriu-me com simpatia e se desculpou pelo poodle que carregava. Qual o quê! Sorri de volta e nunca antes gostei tanto de poodles. Infelizmente, o cachorrinho ficou no quinto andar e levou a dona junto. Ainda encantado com a jovem, saí tão logo a porta se abriu, sem me dar conta de que estava um nível abaixo do meu destino. Ignorei a lâmpada queimada e apertei a campainha. Nada. A excitação foi-se dissipando em aborrecimento. “Esse porcaria me chama e não me atende!”, pensei. Esqueci o dedo na campainha até que, com um clique, a porta cedeu.


Empurrei-a e ensaiei meu discurso de protesto, que morreu na garganta assim que vi a sala desconhecida, um breu quebrado por luzes fracas que vinham de fora. Tolo, chamei meu amigo pelo nome. O silêncio me deu a exata compreensão de onde eu estava. E ao entender isso, minha única reação foi inexplicável. Ainda hoje, não consigo esclarecer, sequer para mim mesmo, os eventos que se seguiram.


Entrei, fechei a porta, atravessei a sala e toquei na maçaneta da porta de vidro que dava para a sacada. Devia estar trancada, mas apenas a empurrei e saí para o ar da noite, ainda quente e abafada. Debrucei-me na mureta e fiquei contemplando o céu estrelado. A lua fora oculta por nuvens. A velhinha se debruçou ao meu lado, na mesma posição: mãos com os dedos entrelaçados, rosto voltado para frente, sem expressão definida. Virei-me para ela.


— A senhora ainda mora aqui? — perguntei.

Ela me olhou e soltou um sorriso minúsculo, triste e culpado. Senti vergonha da indagação que fizera. Percebi que não tinha muito tato para me relacionar com idosas mortas e me calei. Ela então me apontou algo embaixo. Inclinei-me para olhar e, como se fosse dia claro, enxerguei o cadáver no final da rampa da garagem inferior. O pouco sangue que perdera estava no teto da garagem superior, de onde a limpeza se esquecera.


Não sei quanto tempo se passou. Apenas fiquei aflito por não ser capaz de dizer ou fazer nada. Após muito matutar, resolvi ser direto:


— Por que a senhora está aqui? Há alguma coisa que deseje?


Os idosos costumam nos lançar olhares de grande condescendência. Conhecem nossas limitações. Mal disfarçando o tom de obviedade, respondeu:


— O que mais poderia ser? Companhia.


Que grande pateta! Era óbvio! Ri de mim mesmo, constrangido. A vozinha também riu, bondosa e compreensiva. Ofereceu-me uma cadeira, com um gesto de mão. Notei, antes de me sentar, que não havia nada de anormal na rampa da garagem. Ela se sentou também e, arrumando o vestido de flores miúdas, pôs as pernas com largas varizes num banquinho de madeira. Abriu um sorriso cativante e pediu:


— Me fale de você.

10 comentários:

Anônimo disse...

Estamos prevendo alguma série de contos??? Afinal sempre gostaste de escrever...

Val-André Mutran  disse...

Valei-me Nossa Senhora de Nazaré.
Que post mais paid'égua.

Citadino Kane disse...

Fiquei "arropiado"... ai Jesus!

Hudson Andrade disse...

Nem sei quem de nós dois começou essa história de escrever. De qualquer maneira, eu que sempre fui na esteira de algumas coisas tuas, como a construção do blog, me sinto feliz de ter (acho!) te influenciado a escrever contos no teu.
Gosto muito e gosto do fantástico, que é a tônica do livro que escrevi pro IAP e que espero leve alguma coisa.
Duas ressalvas: cuidado com o preciosismo e um certo academicismo. Quando mais perto do público-alvo escrevemos, mais ele e identifica conosco.
Parabéns e um beijo!!!

toniachalu disse...

Yudice,

Acabei de ler o conto e me impressionei bastante.
Primeiro porque é muito tarde e não sei se conseguirei dormir. :)
Depois porque a tua genialidade é muito latente! Será que não te apercebes que tens muita habilidade com as letras, mas que a criatividade é teu dom!? Já trabalhas no projeto do livro??
Por favor, responde que sim!
Beijos

Yúdice Andrade disse...

Jesiel, sim e não. A vontade existe, mas não quero fazer planos porque, se os fizer, algo dará errado. E não se trata de pessimismo: é que já tive arroubos literários e sei que, no meu caso, eles não duram muito.
Val-André, já te agradeci em teu blog pela receptividade ao conto. Valeu.
Pedro, "arropiado" foi demais! Gracias.
Hudson, irmão querido, temos que puxar uns banquinhos para falar sobre isso.
Tônia, amada, obrigado pelas palavras efusivas. E como podes perceber pelo que escrevi acima, em resposta ao Jesiel, a idéia de um livro existe. Aliás, existe desde a infância. Mas vou apenas deixar o barco correr. Se em algum momento tiver material para publicar, eu o farei. Por ora, vou só postando um continho aqui, outro ali... Beijo.

Anônimo disse...

Sabe, não penso que seja diferente, assim, ir devagar mesmo, sem pressão... aposto que existe dentro da tua cabeça mais outros contos que sairão no impulso (te conheço!). Concordo que não deves inflamar-se num arduo planejamento, mas nos brindar, vez por outra, com algumas outras preciosidades dessas.
Um abraços.

Ana Miranda disse...

Yúdice, a-do-rei esse conto, adoro histórias sobrenaturais.
É, meu amigo, comece a juntar seus contos e depois transforme-os em livros e depois...
"Fale-me de você".

Luiza Montenegro Duarte disse...

Prometi que leria e me atrasei em uma semana, mas também não falho com a palavra dada aos amigos!
O conto dos adolescentes é bonito e triste, o que é uma característica comum a muitas boas histórias. Este, no entanto, foi meu favorito. É hilário!
Cumpre o papel de uma história: fazer o leitor sentir emoções. Fui do riso ao medo (juro, estou sozinha em casa e a visão de um fantasma também me faria rezar como nunca antes!) em minutos. Confesso que esperava mais no final, mas isso também não é uma crítica, é outra características comum às boas histórias: a sensação de que poderia não ter terminado ainda!
O que falta para escrever mais? :)

Yúdice Andrade disse...

Se houver o que juntar, Ana. Se houver...

Luiza, sou prolixo. Para mim, foi um desafio descomunal escrever um texto evidentemente limitado, que a todo momento me sugeria algo que podia ser desenvolvido. Mas reconheço que esse é um dos fatores que sepultou minha carreira literária: não precisamos e não podemos desenvolver tudo sempre, muito menos explicar.
Essa vontade de algo mais pode ser encarada como uma virtude e, por isso, agradeço profundamente teu comentário.